24 de março de 2013

Redimindo o Ritual

James K. A. Smith

Protestantes tendem a travar com a menção da palavra “Ritual”. A palavra é um gatilho que evoca uma história da Reforma que se afundou em nossos ossos. Nós associamos ritual com a ortodoxia morta da "vã repetição", a negação da graça, a tentativa de ganhar a salvação, marcar pontos com Deus, “passando pelas moções", e várias outras formas de insinceridade espiritual.


E ainda assim afirmamos, e até celebramos, ritual em outras esferas. Nós reconhecemos que a busca da excelência muitas vezes exige devoção a um regime de rotinas e disciplinas que são formativas precisamente porque são repetitivas. Qualquer pessoa que tenha dominado uma tacada de golfe ou uma fuga de Bach é um animal ritual: ningúem simplesmente alcança tal excelência de outro modo. Em ambos os casos, o ritual é marcado pela repetição encarnada. O ritual recruta nossa vontade através do nosso corpo: os dedos do violoncelista se habituam ao movimento através de escala após escala; todo o corpo do jogador de golfe é treinado por um milhão de movimentos de prática.


Porque nós somos criaturas de hábito encarnadas -- Deus nos criou assim --, somos profundamente moldados pelo ritual. É por isso que o ritual pode de-formar-nos também: conhecemos em primeira mão o poder destrutivo de rotinas e ritmos que podem manter-nos cativos e fazer-nos ser quem não queremos ser.


Em todos esses casos, intuímos que os rituais não são apenas algo que fazemos, eles fazem algo a nós. E o seu poder formativo trabalha o corpo, e não apenas a mente. Então por que devemos ser alérgicos ao ritual quando se trata de nossa vida espiritual? Poderíamos resgatar o ritual?


Habitações do Espírito


Nossa avaliação negativa do ritual deriva de um par de premissas erradas. Primeiro, quando se trata de devoção religiosa, tendemos a ver a observância ritual como mera obediência ao dever, uma forma de marcar pontos com Deus e ganhar crédito espiritual. Vemos ritual como um esforço de baixo para cima -- e "esforço" começa a soar como "obra". Não leva muito tempo antes de isso tudo parecer parte de um elaborado sistema de "salvação pelas obras".


Vamos admitir que algumas pessoas religiosas, sem dúvida, observam o ritual com tal intenção equivocada. Nós nos unimos a Lutero e Calvino e aos Reformadores em rejeitar tais tentativas supersticiosas de bajular Deus. Mas por que devemos nos contentar com simplesmente identificar ritual com "obras de justiça"?


Nós temos uma visão mais nuançada do ritual em outras esferas da nossa vida. Podemos dizer quando alguém está "apenas fazendo os movimentos", mas não vemos os movimentos em si mesmos como o problema. Nós conhecemos a diferença entre a estudante de piano praticando escalas, porque ela "tem que praticar" e a estudante que faz isso em busca da excelência.


Se eu me comprometer com o "ritual" de tocar escalas durante uma hora por dia, durante anos a fio, é porque eu sei que este é um caminho para que eu me torne alguém que eu quero ser. Não é apenas um exercício ascendente da minha parte, é também uma espécie de força descendente que me faz, me molda e me transforma. É uma maneira de eu ser apanhado na música - um caminho para meus dedos e mãos e mente e imaginação serem recrutados para a sinfonia que eu quero tocar.


Se isso é verdade em um nível "natural", por que não deveria também ser verdade para a nossa vida espiritual? A devoção cristã histórica lega a nós rituais e ritmos e rotinas que são o que Craig Dykstra chama de "habitações do Espírito" -- práticas concretas que são condutoras do poder do Espírito e da graça transformadora de Deus.


Pense em alguns rituais do culto reformado. Semana após semana, algumas congregações são convidados a se levantar para ouvir a Palavra de Deus. Por quê? Essa mudança de postura corporal envia um pequeno sinal inconsciente: Ouçam -- algo importante está por vir. Depois de falar a Palavra, o pregador anuncia: "Esta é a Palavra do Senhor." A que o povo responde: "Graças a Deus." Você pode dizer isso sem pensar. Mas isso não significa que não está fazendo alguma coisa. Esse pequeno ritual treina o seu corpo para aprender algo sobre a autoridade da Palavra de Deus, e a responder em gratidão.


Rituais carregados pelo Espírito são formas concretas em que Deus se apodera de nós, reorienta-nos, e capacita-nos a ser portadores de sua imagem. São maneiras para o Espírito nos encontrar onde estamos, como criaturas encarnadas.


Adoração é Para Corpos


Uma segunda razão pela qual gente Reformada desvaloriza o ritual é porque temos a tendência de reduzir a fé cristã a um conjunto de crenças e os crentes a seres pensantes principalmente.


O filósofo canadense Charles Taylor descrever esse intelectualismo como um dos resultados Frankensteinianos da Reforma Protestante -- uma espécie de monstro não intencional, que ultrapassa as boas intenções dos reformadores em si. Justamente criticando a superstição e as visões "mágicas" do ritual, os reformadores desencadearam um impulso em direção ao que Taylor chama de "excarnação". Uma des-encarnação da vida espiritual, que reduziu a "religião verdadeira" à “crença correta”.


O resultado final foi uma reconfiguração completa da adoração e da devoção. O culto cristão não era mais um exercício integral que recrutava o corpo e tocava todos os sentidos. Em vez disso, os protestantes conceberam a adoração como se os crentes fossem pouco mais do que os cérebros-em-uma-estaca. O alvo principal era a mente, os meios primários eram um sermão-palestra, e o objetivo principal era depositar as doutrinas e crenças certas em nossas cabeças para que pudéssemos então sair ao mundo para cumprir a missão de Deus.


O problema com isso, no entanto, é que não somos criados como cérebros-em-uma-estaca; nós fomos criados como criaturas encarnadas, táteis, viscerais que são mais do que processadores cognitivos ou máquinas de crenças. Como portadores encorpados da imagem de Deus, o nosso centro de gravidade está localizado tanto em nossos corpos como em nossas mentes. É precisamente por isso que o corpo é o caminho para o nosso coração, e essa intuição "encarnada" há muito informou a rica história das disciplinas espirituais e da formação litúrgica.


Um pouco desta intuição encarnada já molda o que fazemos. Congregações que celebram a Ceia do Senhor semanalmente (como fizeram na Genebra de João Calvino) têm um profundo apreço pela natureza tátil da prática. Aqui está um ritual que retrata o evangelho e que ativa todos os nossos sentidos: paladar, tato, olfato, audição e visão. É um ritual cuja repetição é um dom, não um aborrecimento. Através de nossa imersão nele, o evangelho se afunda em nossos ossos. Nós absorvemos a história da graça de Deus de uma maneira que nem sequer percebemos.


Ou considere o valor de um simples ritual de confissão que envolve tanto a repetição quanto corpo, e que pode ser especialmente apropriado para a Quaresma. Ao adotar uma oração padrão de confissão, o culto constantemente coloca uma oração nos lábios que se infiltra em nossos corações e sai de nossos corações ao longo da semana. Quando nos ajoelhamos para confessar, a nossa postura física tanto expressa quanto estimula a humildade diante de Deus. Conhecemos a graça de Deus de uma forma diferente porque ela está inscrita em nossos corpos.


Não precisamos ter medo do ritual. Se apreciarmos o fato de que Deus nos criou como criaturas encarnadas, incorporadas, então vamos reconhecer que sua graça carinhosamente se estendeu a nós de maneira que encontra-nos onde estamos: na prática de rituais carregados pelo Espírito, tangíveis e encarnados. Reenquadrados desta forma, poderemos ser capazes de redimir os rituais como dons de Deus para o povo de Deus.


Sobre o autor:
James K. A. Smith é professor de filosofia no Calvin College em Grand Rapids, Michigan, onde ensina no departamento de estudos congregacionais e ministeriais.


Do mesmo autor: Santificação para a Vida Ordinária (iProdigo)

18 de março de 2013

A Virtude da Castidade

N. T. Wright

Além dessas [virtudes da humildade e da paciência] há a castidade. Muitos se surpreendem ao descobrir que os cristãos antigos (assim como os judeus) eram considerados ultrapassados com relação à cultura nessa área. Praticamente todo mundo na antiguidade assumia que as pessoas, para dizer de forma direta, deveriam ter o máximo de sexo possível. Casamento (entre um homem e uma mulher) era uma coisa, e muitos nem sequer queriam ser fiéis ou, por algum motivo, temiam a traição. O principal problema com o adultério, contudo, não era moral: era o cônjuge enciumado. Ligações sexuais fora do casamento eram comuns e aceitas. Os abortos eram procurados com frequência e os filhos indesejados eram abandonados para os animais selvagens comerem. Os problemas que restavam eram resolvidos com facilidade, sendo que a principal dificuldade era a da família tentando encontrar um marido para uma filha com um “passado”. Houve tabus diversos, em vários tempos e lugares. Em Atenas, por exemplo, havia uma escalada detalhada do que era aceitável quando um homem tinha relacionamento homossexual com outro mais jovem. Todavia ninguém considerava o homossexualismo, inclusive parcerias matrimoniais por toda a vida, como estranho, nem repreensível. Platão chegou a celebrar essas parcerias como a forma mais elevada de amor (em Simpósio). Ninguém se preocupava com outras práticas sexuais bem diferentes, como a relação com animais. Muitas dessas coisas aconteciam nos templos pagãos e em volta deles, mas não eram limitadas a eles.



Os primeiros cristãos compartilhavam a visão dos judeus, da antiguidade e atuais, de que esse comportamento era tenebroso, desumanizador e distorcia a essência do significado da vida humana. Acreditavam que o sexo foi concedido para prazer mútuo, entre marido e esposa, voltado para o exterior (para o exterior porque, como o amor de Deus, gera nova criação, tanto em filhos quanto na criação de um lar caloroso, seguro e hospitaleiro). Esse, e não um preconceito arbitrário ou uma repressão pelo medo, foi o motivo de rejeitarem o costume generalizado em seu mundo. Eles acreditavam terem sido chamados para lançar nessas trevas a luz de uma forma diferente de viver.



O contraste marcante entre a crença e o comportamento deles e o ambiente que os cercava nos leva de volta a Jesus, que alertou, em passagem que já vimos, contra o comportamento impuro que emerge de forma espontânea do fundo da personalidade humana. Os termos com que ele se expressa, fazendo eco e endossando proibições importantes do Antigo Testamento, deixando claro que, a despeito de impressões contrárias no meio do povo, ele endossava com firmeza a proibição judaica ancestral quanto a relacionamento sexual de qualquer tipo fora do casamento por toda a vida entre um homem e uma mulher. Todo o Novo Testamento mostra que o motivo da vida cristã é refazer os seres humanos à imagem de Deus; quando seguimos a ideia até sua raiz, fica claro que o par que carregava a imagem era macho e fêmea, chamados para deixar os outros e se apegarem um ao outro. Não é à toa que teólogos de todos os tempos veem essa união humana como sinal do compromisso inabalável do Deus criador com sua criação. Não é surpresa que quando céu e terra finalmente se unem, no fim do livro de Apocalipse, a imagem usada é a do casamento. Esse é o telos, o alvo de toda a nossa existência. A virtude agarra o alvo pela fé e apreende as lições para viver no presente antecipando genuinamente o futuro, com fidelidade no casamento e abstinência fora dele.



A cultura ocidental, composta em grande parte por nações pelo menos nominalmente cristãs, foi em parte colonizada com a visão cristã sobre casamento e sexualidade -- mas a maioria, não. Tentativas de forçar a abstinência vêm e vão, sendo substituídas, também de forma intermitente, por indulgência quase que forçada (pense no século 17, com a restauração que sucedeu os puritanos; ou a rebeldia contra os padrões considerados “vitorianos” após a Primeira Guerra Mundial, embora a história mostre que durante grande parte do século 19 a vida sexual na Europa era tão sem restrições quanto em qualquer outra época). Os que tomam os ensinos de Freud de forma superficial entendem que o sexo está por trás de tudo e, assim, somos incapazes de resistir. Nem devemos tentar. O Darwinismo popular insiste que o que importa é a força vital que nos induz a propagar nossa espécie, então é melhor aceitar. As duas correntes criaram a atmosfera em que, na mente popular, qualquer convite sério a se restringir a forma ou as circunstência da expressão sexual encontra não discussão séria, mas apenas desprezo. Um correspondente de um jornal popular outro dia exclamou: “Ah! Toda essa conversa sobre abstinência vem de uns lunáticos de direita, mal orientados. Logo a biologia vai se manifestar e eles vão agir como todo mundo”. Em outras palavras: a biologia reina, temos impulsos que somos incapazes de controlar, e resistir vai contra a saúde e a natureza. Múltiplas parcerias sexuais -- e, agora, até vários relacionamentos quase contratuais (poliamor, com três ou mais pessoas em um acordo de relacionamento multidirecional de sexo) -- começam a ser comportamentos aceitáveis. Contracepção fácil e aborto abriram as comportas para uma nova rodada de licença sexual nas últimas décadas -- licença que nem a crise da aids conseguiu revogar.



Os cristãos, porém, sempre afirmaram que o autocontrole é uma das variedades de fruto do Espírito. Sim, é difícil. Sim, é necessário se dedicar para descobrir por que é mais difícil resistir a determinadas tentações, em certos momentos e lugares. O motivo é que a castidade é virtude: não é, primeiro e acima de tudo, uma regra que se decide seguir ou quebrar (embora certas regras sejam bem claras nas Escrituras); com certeza não é algo que se calcula segundo um princípio, como “a maior felicidade possível para o maior número de pessoas” (até porque a esmagadora felicidade de curto prazo da maioria dos relacionamentos sexuais influenciaria artificialmente o resultado); e, em paticular, como Jesus mesmo indicou, não surgirá se seguirmos o curso do que vem naturalmente. É aí que os celibatários, como Jesus e muitos outros heróis e heroínas desconhecidos em comunidades monásticas e muitos lugares menos óbvios, descobriram a alegria de uma “segunda natureza” de autocontrole que grande parte de nossa cultura, como a maioria do mundo antigo, jamais chegou a imaginar. No lado inverso, como sabem os que fazem atendimento pastoral nas famílias e encontram pessoas que seguem os hábitos da sociedade, as mágoas e feridas causadas por esses hábitos são profundas, demoram a sarar e prejudicam a vida. Muitos dizem que a Igreja é estraga-prazeres, por protestar contra a liberdade sexual. No entanto, o verdadeiro fim da alegria vem com a busca exclusiva do prazer. Como no uso dos cartões de crédito, a etiqueta do preço fica escondida a princípio, mas os débitos físicos e emocionais causados demandam um longo tempo para serem sanados.



Aqui, paciência e humildade, até então à margem, voltam ao jogo. O impulso frenético pela intimidade sexual é parte do desejo de se expressar, de se desenvolver, de mostrar quem se é e como pretende se comportar. “Não”, diz a humildade, “não é esse o caminha para descobrir seu verdadeiro eu. Você o descobre ao abrir mão de você mesmo”. “Exatamente”, concorda a paciência, “satisfazer-se por impulso é menosprezar você mesmo e todas as outras pessoas”. As virtudes se relacionam. Se quiser uma delas, você tem de desenvolver todas.



O mesmo vale, claro, para a caridade, que, como notamos, Paulo descreve como a virtude que se deve colocar sobre e em volta de todas as outras, como um cinto que mantém todo o resto no lugar certo (Cl 3.13). Amor (a palavra que normalmente usamos, embora seja imprecisa, pois o significado de “caridade” encolheu) é o que capacita a paciência, a humildade e a castidade a permanecerem no devido lugar, porque o amor respeita o outro e deseja o melhor para ele. Por sua vez, o amor é sustentado, conforme afirma Paulo em sua famosa passagem, pela fé e pela esperança, tudo junto olhando para Deus, o criador e recriador, e para as promessas dele, asseguradas em Jesus Cristo.





Fonte:  Eu Creio, e Agora, p. 246-250

Autor de Eu Creio, e Agora,  Surpreendido pela EsperançaSimplesmente Cristão e O Mal e a Justiça de Deus, Os Desafios de Jesus, O Caminho do Peregrino, Seguindo Jesus, Judas e o Evangelho de Jesus,  Paulo: Novas PespectivasN.T. Wright é um dos mais conhecidos e respeitados estudiosos do Novo Testamento da atualidade. Foi Bispo anglicano de Durham, na Inglaterra, professor das universidades de Cambridge e Oxford por vinte anos e é professor visitante de universidades como Harvard Divinity School, nos Estados Unidos, Universidade Hebraica de Jerusalém e Universidade Gregoriana em Roma, entre outras. É autor de mais de quarenta livros e articulista de jornais como The Times, The Independent e The Guardian.