8 de setembro de 2014

Igreja e Instituição – Revisitando uma Trilha Percorrida

Algumas falas no último Encontro Mosaico (30/09) me fizeram reviver muito das discussões que remontam ao ano de 2008, numa movimentação na blogosfera sobre o tópico igreja: igreja emergente, igreja orgânica, igreja caseira, etc ...

Esse assunto todo é muito pessoal para mim, pois como me escreveu um "amigo" em janeiro de 2013: “uma coisa comum nos nossos dois destinos foi o clima de mudança de transição, estamos em busca de um lugar, não só de uma comunidade eclesiástica, mas de um lugar na vida mesmo.”

Em agosto de 2010 eu já tinha escrito uma espécie de “suma” de tantas coisas que tinha lido e discutido até aquele momento acerca do assunto. Já naquela época eu destacava a posição de Sandro Baggio, que se envolvera a fundo nas discussões e conhecia a literatura produzida no período sobre o tema.

Enquanto eu ainda morava e trabalhava em Nerópolis-GO (para onde fui após 25 anos em Uberlândia dos quais 15 na Igreja Metodista), a leitura de um livro (que Baggio comenta em um de seus posts) de Kevin DeYoung e Ted Kluck em 2010 encerrou um ciclo de debates e uma tomada de posição pessoal. O livro Why We Love the Church: In Praise of Institutions and Organized Religion ressoou com muito do que eu então percebia após os debates que tiveram na leitura de “Cristianismo Pagão”, de Frank Viola, um de seus momentos mais intensos.

Recordei muitas daquelas posições ventiladas à época nesse final de semana. Segundo uma dessas posições, a “instituição” é retratada como um problema para a vida das relações na igreja. (Essa discussão é semelhante aquela sobre religião x espiritualidade, que rendeu vivo debate reproduzido no blog Voltemos ao Evangelho).

Em uma série de postagens sobre o tema, Sandro Baggio tomou posição que representou um significativo contraponto à onda da juventude digitalmente incluída da época:

Nos comentários das postagens encontramos muitos interlocutores das discussões à época. Vale destacar o debate entre Baggio e Brabo nos comentários do primeiro post, porque representa bem os modos de pensar distintos que se firmaram ali. Digna de nota é a referência de Brabo a um texto de Elienai Cabral Júnior:

     “A instituição também incorpora uma dinâmica maligna. Na instituição somos tentados a substituir a presença pessoal e afetiva por ritos burocráticos.”

Sandro Baggio, contudo, afirma em suas postagens listadas acima:

“Não considero a instituição como, por natureza, inimiga mortal da igreja. (...)

Ao insistirmos no conceito de que para ser igreja de verdade precisamos nos livrar da instituição que a cerca, o que estamos dizendo é que a vida é algo que pode (e não só pode, mas deve) ser vivida fora do corpo. A instituição é a matéria má que sufoca o espírito (o livro que mata a borboleta) e, por isto, precisamos nos livrar dela. Esta idéia é tão velha quanto o gnosticismo com sua visão dualista e maniqueísta da vida. E não condiz com as realidades da vida.

Livrar-se de instituição é, de certa forma, desencarnar, deixar de viver, de se comunicar, de servir, de se relacionar, pois todas estas coisas, de alguma forma, estão cercadas por instituições. (...)

Minha sugestão sincera: não perca tempo lutando contra o fantasma da instituição. Ele é tão somente isto: um fantasma. Em vez disso, use seu tempo para amar e servir a Deus e ao próximo, em relacionamentos de compromisso e mutualidade numa comunidade de fé, amor e esperança centrada em Jesus.”

Em comentário ao segundo post, Ariovaldo Carlos Júnior, em 27 de julho de 2011, escreveu:

“Ótima reflexão. Afinal, a instituição deve SERVIR à Igreja de Cristo. O problema tem sido o radicalismo de alguns em considerar que, devido às inversões de prioridade deste “serviço”, tudo que é organizado é ruim. Como se tudo que fosse desorganizado fosse necessariamente melhor e duradouro.”

Em 2009 foram publicados no Brasil os livros "A Cabana" e "Por que você não quer mais ir à igreja?" pela Editora Sextante. Essas obras representavam o pensamento e sentimento de desconforto que se difundia entre a juventude que percebia sinais de necessidade de renovação das instituições eclesiásticas, mas não fornecia uma proposta construtiva ou reformadora, mas um sentimento revolucionário, quase iconoclasta.  No entanto, os jovens que atualmente estão preocupados com missão cristã, transformação e justiça parecem não ecoar esse discurso.

Desde 2009, nas discussões sobre igreja emergente, a posição assumida pelo novo calvinismo americano (neopuritanismo) me pareceu oferecer interessantes contrapontos a algumas posições do diálogo emergente da época. Já em 2010, John Piper, que no ano seguinte diria adeus ao ensino de Rob Bell, já profetizara que movimento emergente se desvaneceria:

        Isso é o que acontece quando se prioriza relacionamentos em detrimento da verdade. Quando a verdade é priorizada, os relacionamentos se tornam parte dela. Quando os relacionamentos são priorizados e a verdade é deixada de lado, então ela se perde. Como consequência, os relacionamentos se arruínam, e é a isso que me refiro quando digo que sua liderança está em ruínas.

Demorou muito, porém, para que eu superasse a resistência com o calvinismo e entender que há duas correntes distintas representadas atualmente por movimentos compreendidos sob os termos neopuritanismo (soberania de Deus na salvação) e neocalvinismo (soberania de Deus na criação).

Contudo, desde que conheci esse neocalvinismo (holandês), o qual descobri por meio do L’Abri (que visitei pela primeira vez em maio de 2011), venho me movendo até uma posição “católica reformada” que abraço hoje. É bom destacar que, segundo Guilherme de Carvalho,

       L'Abri é uma síntese de calvinismo evangelicizado (Schaeffer) com neocalvinismo (Rookmaaker). E o ponto de conexão é a visão Bavickiana de Natureza e Graça (que era fundamental para Rookmaaker e também para Schaeffer, via Van Til).”

Conhecer esses pensadores e a expressão dessa tradição em instituições de ensino como o Calvin College me abriram para um vasto campo do que eu me referi como uma fé católica reformada, abraçado pelo professor James K. A. Smith, o qual me fora apresentado pelo teólogo e pedagogo Igor Miguel. Na minha peregrinação passei pela conversa emergente que enfatizava a necessidade de a igreja contextualizar-se frente aos desafios da pós-modernidade. Num ponto da caminhada cheguei ao livro de Smith, Who’s Afraid of Postmodernism, 2006: Baker Academic, em que ele sintetiza:

"Uma igreja verdadeiramente pós-moderna será profundamente histórica (recuperando sua antiga herança) e litúrgica (ativando a imaginação através do símbolo e do sacramento".

É interessante notar como essas trajetórias se cruzam num post de Igor Miguel, de maio de 2011, em que ele escreve:

“Sim, desde o livro de James K.A. Smith, Desiring the Kingdom, tenho procurado viver uma espiritualidade na comunidade, por isto, menos individualista, intimista e pietista. Eis o motivo de alguns textos aqui escritos sobre orações, a docilidade da vida comunitária e outras gotas de louvor e gratidão por tudo que tenho aprendido.

Mas, de verdade, o livro de Kevin DeYoung & Ted Kluck, intitulado "Por que amamos a Igreja", me surpreendeu por sua simplicidade e objetividade ao apresentar a possibilidade amarmos a Igreja Local novamente. Em dias em que todo mundo quer dar uma resposta à "crise evangélica", encontramos boas opiniões a respeito, mas também péssimas soluções.

Como eu disse, o tema "plantação de igreja" me “salvou” quando eu estava em “crise” sobre o assunto. O movimento anglicano norte-americano de plantação de igrejas me despertou para olhar para os temas “igreja e instituição”, teologia, arte e liturgia com outra perspectiva.

Em 2011, participando de um grupo jovem Dedo de Prosa com Deus eu percebia que precisávamos da transição de grupo para igreja, mas não reuníamos condições para fazer essa travessia à época. Em fevereiro de 2012 reencontrei parte do grupo do Love s.a.(em cujas reuniões de oração participei em 2010) comecei a participar em um pequeno grupo que nutria a visão de se tornar uma igreja em plantação.

Com esse histórico, revisitar a discussão sobre instituição me causa certa inquietação, pois sob uma perspectiva da cosmovisão reformada, adquire-se uma compreensão melhor daquilo que Sandro Baggio disse:

“Ao insistirmos no conceito de que para ser igreja de verdade precisamos nos livrar da instituição que a cerca, o que estamos dizendo é que a vida é algo que pode (e não só pode, mas deve) ser vivida fora do corpo. A instituição é a matéria má que sufoca o espírito (o livro que mata a borboleta) e, por isto, precisamos nos livrar dela. Esta idéia é tão velha quanto o gnosticismo com sua visão dualista e maniqueísta da vida. E não condiz com as realidades da vida.”

Albert Wolters, apresentado em seu importante livro “A Criação Restaurada” (Creation Regained), nos esclarece (p. 71, 77):

“O grande risco é sempre escolher algum aspecto ou fenômeno da boa criação de Deus e identifica-lo, em vez da intrusão da apostasia humana, como o vilão no drama da vida humana. (...) O resultado é que algo na boa criação é declarado mau. (...) Parece haver um traço gnóstico, enraizado no pensamento humano, que faz com que as pessoas culpem alguns aspectos da obra da mão de Deus por todas as aflições e desgraças do mundo em que vivem. (...)

Em resumo, vimos que a queda afeta toda a extensão da criação terrena; que o pecado é um parasito sobre a criação, e não parte dela; e que, à medida que afeta toda a terra, o pecado profana todas as coisas, tornando-as “mundanas”, “seculares”, “terrenas”. Consequentemente, cada área do mundo criado clama por redenção e pela vinda do reino de Deus”.

Em uma resenha de um livro de D. A. Carson, James K. A. Smith chama a atenção para a importância, na grande narrativa bíblica (criação, queda, redenção, consumação), do "Mandato Cultural" (Gn 1:27-29): o chamado criacional da humanidade para cultivar as possibilidades latentes dentro da criação através do contínuo trabalho cultural. O autor clama por uma teologia da cultura que mostra como o trabalho de "fazer humano" está enraizado na própria criação: "essa tarefa de elaboração humana é precisamente a forma como portamos a imagem de Deus no mundo (como "sub-criadores", nas palavras de Tolkien)."

O autor destaca que se "as instituições, sistemas e estruturas" estiverem ausentes de uma abordagem da criação, eles também não aparecerão no radar da queda e no da redenção. Já por uma perspectiva da escatologia, a "eternidade" nos aparece em muitas abordagens evangelicais como carente de instituições culturais – uma eternidade sem comércio ou política, arte ou atletismo. Para Smith, "tal visão achatada do nosso futuro redimido é o correlato de uma compreensão atrofiada da criação".

Na sequência do texto, o autor pergunta:

"Mas o que é o evangelho senão o chamado e convite de Deus para sermos restaurados e renovados como portadores apropriados da imagem de Deus -- que carregam sua imagem ao desdobrar o potencial da criação em cultura corretamente ordenada? Ser portadores da imagem de Deus é um chamado, uma vocação e uma tarefa, e não uma propriedade estática do ser humano. E Cristo, como o segundo Adão, mostrou-nos como se parece fazer isso: em um mundo caído e quebrado, a forma de tal vocação é cruciforme; ser agentes culturais do Deus crucificado não é um projeto de transformação triunfal, mas de testemunho sofredor."

O mandato cultural é, pois, uma tarefa humana que envolve a expressão da lei criacional na civilização humana. Como nos diz Albert Wolters (p. 55, 28):

"O governo da lei de Deus é imediato no domínio não-humano, mas tem um mediador na cultura e na sociedade. No domínio humano, homens e mulheres tornam-se co-trabalhadores com Deus; como criaturas feitas à imagem de Deus, eles também têm um tipo de senhorio sobre a terra, e são vice-regentes na criação" (...) "Somos chamados a participar na obra criacional de Deus que está em progresso, para sermos ajudadores de Deus na execução da sua obra-prima".

Assim, instituições culturais como escolas, empresas, igrejas, estados, assembleias legislativas, bibliotecas, fazem parte da criação, são totalmente afetadas pela queda e estão sob o alcance da redenção de Cristo que é Senhor sobre todos os centímetros da realidade criada. A tendência gnóstica se manifesta, na discussão que estamos enfocando, em suspeitar das instituições em si mesmas, especialmente quando estas são um aspecto da igreja. No editorial da edição fall 2013 da revista canadense Comment, entitulada "We Believe in Institutions", James K. A. Smith escreve:

Em uma era cínica que tende a glorificar 'start-ups' e celebrar a suspeita anti-institucional, a fé em instituições soará datada, indigesta, fora de moda, e mesmo (suspiro) "conservadora". Assim os cristãos que estão ansiosos por ser progressistas, hip, relevantes e criativos tendem a comprar tal anti-institucionalismo, assim espelhando e imitando tendências culturais mais amplas (o que, ironicamente, são frequentemente, parasitárias das instituições!).

        E, no entanto esses mesmos cristãos estão justamente preocupados com "o bem comum". Eles são recém convencidos de que o Evangelho tem implicações para toda a vida e que ser cristão deve significar algo para este mundo. Jesus chama-nos não só para garantir a nossa própria salvação em algum gueto religioso privatizado. Ele nos chama para buscar o bem-estar da cidade e de seus habitantes ao redor de nós. Nós amamos a Deus ao amar o próximo; glorificamos a Deus ao cuidar dos pobres; exibimos a bondade de Deus através da promoção do bem comum.

       Mas aqui está a coisa: se você está realmente apaixonado por promover o bem comum, então você deve resistir ao anti-institucionalismo. Por que as instituições são maneiras de amar nosso próximo. As instituições são estruturas concretas duráveis ​​que -- quando funcionando bem -- cultivam todo o potencial da criação em direção ao que Deus deseja: shalom, paz, bondade, justiça, florescimento, prazer. As instituições são a nossa forma de obter uma alça sobre realidades concretas e abordar diferentes aspectos da existência humana. As instituições, por vezes, são andaimes para apoiar os fracos; às vezes elas funcionam como cercas para proteger os mais vulneráveis​​; em outros casos, as instituições são o trampolim que nos permite buscar inovação. Mesmo que elas possam tornar-se corruptas e necessitarem de reforma, as próprias instituições não são o inimigo.

     Assim, acreditamos nas instituições porque nos opomos à injustiça. Mas fundamentalmente acreditamos nas instituições porque acreditamos nas Escrituras e na comissão cultural dada à humanidade no Jardim. Ser frutífero e multiplicar é começar -- e herdar -- a instituição da família. Cultivar a criação é encher a terra com a vida institucional que estava implorando para ser desfraldada em museus e escolas, nas legislaturas e bibliotecas, nas universidades e sindicatos. As instituições são maneiras comuns duráveis pelos quais podemos atuar em conjunto com nosso próximo para conseguir bens penúltimos. Então, ao invés de pensar as instituições como grandes, pesadonas, gigantes e estáticas, pense em instituições como encenações sociais dinâmicas. Tente imaginar "instituições" como esferas de ação. As instituições não são apenas algo que nós construímos; eles são algo que fazemos.”

Dallas Willard, falecido professor de filosofia que escrevia sobre formação e disciplinas espirituais, faz uma interessante aplicação da imagem de Paulo que: “temos esse tesouro em vasos de barro” (2 Co. 4.7). Aqui, o vaso de barro é o corruptível corpo do apóstolo e os eventos visíveis de sua vida terrestre. Para Willard, os mesmos princípios de "vaso" e "tesouro" se aplicam às congregações locais, às suas tradições e seus grupos de alto-nível chamados de "denominações". A identidade de grupos, congregações e denominações são definidas historicamente por contingências humanas que são muitas vezes confundidas com o tesouro da verdadeira presença de Cristo. Para evitar a “armadilha do vaso”, Willard recomenda o foco na Grande Comissão:

Certamente que não podemos evitar ter vasos. E devemos ser sensíveis a eles, pois isso faz parte do que é ser humano e finito. Até mesmo Jesus teve o seu vaso. Ele era um judeu e isso se tornou a primeira armadilha do vaso que as primeiras congregações de discípulos precisaram enfrentar. Atos e as cartas do Novo Testamento são um registro de como isso foi superado.

Podemos, portanto, evitar fazer do vaso o tesouro. E podemos identificar o tesouro sem fazer referência a qualquer vaso. No entanto, o tesouro sempre terá um vaso. O próprio Jesus nos mostrou o caminho, e a congregação local pode seguir esse caminho. [...]

Em poucas palavras, a congregação local que adotar os "princípios e as verdades absolutas" do Novo Testamento, com a natural consequência de se tornar e produzir filhos da luz, tem que apenas seguir as instruções finais de Jesus: "Ao saírem pelo mundo, façam aprendizes de para mim de todos os tipos de pessoas, imergindo-as na realidade Trinitária e ensinando-as a fazer todas as coisas que lhes ordenei" (Mt 28:19-20, paráfrase). As ordens foram acompanhadas de declarações categóricas sobre os muitos recursos para a tarefa: "Foi-me dada toda a autoridade nos céus e na terra" e "estarei com vocês a cada momento, até que o trabalho esteja concluído" (v. 18, 20, PAR).”

N. T. Wright, um dos maiores estudiosos contemporâneos do Novo Testamento, escreve em seu livro dedicado à ressurreição, escatologia e missão, Surpreendido pela Esperança, que a igreja deve remodelar a sua missão identificando-a com “viver o futuro”. Parte essencial desse futuro consiste na redimida criação: espaço, tempo e matéria. O autor explica sua tese (p. 273):

“A ordem criada, que Deus começou a redimir na ressurreição de Jesus, é um mundo no qual o céu e a terra foram planejados para estarem unidos, não separados. A partir dessa união, Deus irá aprimorar a declaração que fez no princípio, de que a criação é “muito boa”.

O eminente autor, bispo anglicano aposentado para se dedicar à docência, aborda o fenômeno do abandono das práticas tradicionais das igrejas pela juventude: templos, liturgias, orações formais e os sacramentos. Na visão de Wright, isso tem origem em um tipo de “protestantismo latente” na cultura cristã ocidental, na crença implícita de que “templos, liturgias e coisas assim são, por natureza, não-espirituais” (p. 272). Com base na “lógica da nova criação”, Tom Wright pergunta (p. 273): “O que acontece quando pensamos em espaço, tempo e matéria sendo renovados, em vez de abandonados, na vida da igreja?”

Quanto ao espaço, o autor afirma que é preciso urgentemente retomar uma “teologia do lugar” (presente na tradição celta), de “lugares finos” em que o véu que separa céu e terra se tornam quase transparente. A restauração futura do mundo inteiro por Deus é antecipada na restauração de lugares para adoração e oração; não um esconderijo do mundo, mas um posto avançado pelo qual se reivindica parte do espaço dado por Deus para a sua glória, antecipando o dia em que o mundo inteiro irá tremer diante dele. Para Wright, há um dualismo tolo na declaração de que templos antigos e coisas desse tipo são irrelevantes para a missão de Deus. O autor afirma um princípio norteador (p. 274): “Sim, reivindicações territoriais podem se tornar idólatras e abusivas [...] No entanto, a resposta ao abuso não está no dualismo, mas no uso apropriado".

No tocante à renovação e à reivindicação do tempo, o autor afirma que o tempo da igreja, a longa história da igreja cristã e a “tradição” acumulada durante esse período devem ser seriamente considerados em qualquer escatologia fundamentada na visão da igreja voltada para missão (p. 275):

“A história da igreja é a história de caminhos nos quais, a despeito da tolice, do fracasso e do pecado evidente, o futuro de Deus já começou naquele que, para nossos ancestrais, era o “tempo presente”, deixando-nos um legado que é parte do “passado”, e que está repleto não somente de erros e de estilos de vida culturalmente condicionados, mas também de padrões da nova criação que já estão, a partir do nosso ponto de vista, entrelaçados na história – pedaços do futuro de Deus, por assim, dizer que são agora pedaços do nosso passado. [...] Descartar a tradição apenas porque ela é “tradição” é render-se à pós-modernidade e a um tipo de ultraprotestantismo que arranca a raiz da árvore por acreditar que árvores devem sem completamente visíveis para que todos vejam seus frutos, e não enterradas em um solo sujo.”

Finalmente, quanto ao item matéria, adverte Wright (p. 276-277):

“Se não quisermos cair no platonismo, negando assim a excelência da criação, devemos retomar a ideia da encarnação e da ressurreição corpórea de Jesus, e a promessa de que a criação será renovada e ficará livre da morte e da corrupção. [...] É dentro dessa estrutura de pensamento que os sacramentos cristãos clássicos do batismo e da eucaristia ganham significado. [...] O abuso do sacramento não anula seu uso apropriado. [...] Se a igreja precisa ser renovada em sua missão no mundo e para o mundo de espaço, tempo e matéria, não podemos ignorá-lo o marginalizá-lo. Devemos, antes, reivindica-lo para o reino de Deus, para o senhorio de Jesus e no poder do Espírito, a fim de que possamos então ir e trabalhar pelo reino, anunciar o senhorio de Cristo e realizar mudanças por meio desse poder. Ninguém ensina alguém a cantar jogando fora seus instrumentos musicais. Portanto, a missão da igreja deve incluir, em nível estrutural, o reconhecimento de que nosso espaço, tempo e matéria presentes estão sujeitos à redenção, e não à rejeição. [...] A despeito da tendência observada na “igreja emergente”, de marginalizar espaço, tempo e matéria, eu continuo convencido de que o modo de seguir adiante à descobrindo a verdadeira escatologia, a verdadeira missão enraizada na antecipação dessa escatologia, e de formas de igreja que incorporam essa antecipação”.

Portanto, o cristianismo bíblico nos provê recursos para evitar a rejeição da estrutura de qualquer aspecto da criação de Deus ao discernimos os efeitos da Queda na direção distorcida que assumem para que cooperamos com o Deus Trino direcionando para Cristo todas as coisas. A redenção em Jesus é “o antídoto completo e decisivo para a distorção criacional”. Qualquer coisa na criação pode ser direcionada para a obediência a Cristo: “os seres humanos individuais, os fenômenos culturais como a tecnologia, a arte e o conhecimento, as instituições sociais como sindicatos, escolas e corporações e as funções humanas como a emoção, a sexualidade e a racionalidade” (Wolters, 69).

Na Carta XXIII de suas "Cartas a um Jovem Calvinista", James Smith recorre a Santo Agostinho para articular uma doutrina robusta da bondade da criação:

      "As 'coisas' não são pecaminosas, o que é pecaminosa é a forma como nos relacionamos com elas, o que fazemos com elas. E isso se resume a uma questão sobre o que nós amamos e como amamos. [...]

        Para Agostinho, o pecado é uma questão de "como" e não do "quê". O que precisa mudar, diz Agostinho, não são as coisas da criação, mas o nosso amor. Assim, Agostinho introduz uma distinção importante, especialmente no livro 1 da "Doutrina Cristã", o que Deus deseja e projeta para as suas criaturas é uma "ordem correta do amor", que significa simplesmente que fomos criados e chamados a ser criaturas cujo propósito é amar ao Deus Trino, e, assim, encontrarmos a nossa identidade e nos deliciarmos nessa ordem correta do amor. Para Agostinho, nós somos o que nós amamos. Na verdade, não podemos deixar de amar: mesmo caída, a humanidade pecadora ainda é impelida a amar; mas como pecadores, nós amamos as coisas erradas da forma errada. [...]

        As tentações do mundo, então, não são um reflexo do que há de errado com a criação, elas são um indicador de que há de errado conosco. O que está em questão aqui não é a criação em si, mas como nos relacionamos com a criação. [...]

     Mas pela graça de Deus a nossa inclinação para amar pode ser corretamente direcionada, corretamente dirigida ao próprio Deus. Pela graça de Deus o nosso amor pode encontrar o propósito para o qual foi criado: o próprio Deus. Quando o nosso amor é corretamente direcionado de forma que nos deleitemos em Deus, então vamos perceber que Deus nos dá a sua criação, para que possamos desfrutar Dele."

O aspecto institucional da igreja, portanto, não está fora da abrangência do senhorio de Cristo e deve ser submetido a constante reforma para que obedeça a direção apontada pela graça. A instituição não é sagrada nem secular, mas é “santificada” pela palavra de Deus e pela oração (1 Tm 4.5).