19 de abril de 2016

Imagining the Kingdom: How Worship Works - Resenha de Caio Peres



James K. A. Smith, Imagining the Kingdom: How Worship Works (Grand Rapids: Baker Academic, 2013).
Resenhado por Caio Peres

Esta é a segunda obra de uma série de três livros, que formarão o projeto sobre Liturgias Culturais de James K. A. Smith. Durante a leitura, porém, tive a impressão de Imagining the Kingdom [Imaginando o Reino] não foi uma sequência lógica à primeira obra, Desiring the Kingdom [Desejando o Reino], mas sim uma leve correção. Em Desiring the Kingdom, Smith trabalha com as mesmas premissas apresentadas em Imagining the Kingdom: uma pedagogia antropológica que descarta a primazia do intelecto e coloca a prioridade nos hábitos corporais. No entanto, na primeira obra, Smith parte de uma visão fundamental do desejo, enquanto na segunda obra ele parte de uma visão fundamental da imaginação. Ele mesmo reconhece que a imaginação precede o desejo (“… imaginação precede desejo… Tornamo-nos pessoas que desejam o reino… desde que sejamos pessoas que foram treinadas a imaginar o reino de certa forma”, p. 125). Isso, de forma alguma, tira o valor da primeira obra, mas coloca em dúvida se a sequência correta deveria ser a apresentada por Smith. 

            Como já indiquei, Imagining the Kingdom mantém o propósito de enfatizar os hábitos corporais na formação/ aprendizagem humana. Na introdução, Smith afirma que nossa visão do mundo e nossas ações nele são governadas por desejos inconscientes, disposições pré-intelectuais e hábitos pré-conscientes.  No decorrer da obra, Smith indica a importância de hábitos, já que esse conceito tem grande afinidade com o tema de seu estudo: liturgia. 

            Para fundamentar tais afirmações, Smith dialoga com dois estudiosos: Maurice Merleau-Ponty, um fenomenologista (capítulo 1), e Pierre Bourdieu, um teorista social (capítulo 2). 

            No primeiro capítulo, Smith apresenta o argumento de Merleau-Ponty de que o modo de interação do ser humano com o mundo não é o de um sujeito (ser humano) e um objeto (o mundo), mas que o ser humano tem uma “comunhão” com o mundo; ele existe com o mundo e não no mundo. Daí, a importância do corpo, já que é por meio dele que acontece essa “comunhão”. Para Merleau-Ponty, o corpo “conhece” o mundo antes que o ser humano tenha consciência deste mundo. A consciência do mundo depende da interação primária do corpo com ele, por isso o modo como “entendemos” o mundo depende, antes, de pressuposições e hábitos corpóreos que nos deram o “contexto” pelo qual interpretamos o mundo. Merleau-Ponty chama esse “contexto corpóreo” de “percepção”, daí o nome de seu livro, Phenomenology of Perception [Fenomenologia da Percepção]. Citando outro autor, Iain McGilchrist, Smith fala do centro essencial do ser como sendo subcortical (p. 35). Mesmo que tal antropologia pareça anti-intelectual ou, até mesmo, fundamente uma visão do ser humano “predestinado” por sua “percepção” precedente à consciência, Smith não vê as coisas dessa maneira. Ele responde a essas críticas de duas formas. Uma delas, citando McGilchrist mais uma vez, é que o nosso ser inconsciente é tão parte de quem eu sou quanto o meu ser consciente. Por outro lado, ele tenta enfatizar, diversas vezes, que essa “percepção” não é imutável e nem inata (ing. hardwired), mas se trata de algo adquirido, portanto, desenvolvido, que pode, sendo assim, ser alterado (não por ideias, mas por práticas corpóreas). 

            No segundo capítulo, Smith apresenta o estudo do antropologista Pierre Bourdieu, em sua obra The Logic of Practice [A Lógica da Prática]. Para Bourdieu, há uma inconsistência no estudo antropológico que perde a lógica do comportamento prático estudado, pois o interpreta a partir de uma lógica científica. Smith diz que o problema para Bourdieu não é reflexão teórica, mas a falta de distinção entre a lógica do comportamento prático e a lógica científica. Um bom exemplo dado por Bourdieu é o estudo linguístico. Enquanto o linguista estuda a língua como uma construção estruturada de símbolos, o praticante nativo, simplesmente a usa para alcançar seus objetivos. O conhecimento prático é dependente de um “senso prático”, que Bourdieu chama de hábito. O hábito é um sistema de disposições estruturadas e estruturantes, preservado por uma comunidade de prática. Assim, o hábito vai além do indivíduo, sendo um tipo de tradição encarnada. Por causa disso, um ambiente adequado para manifestar e apreender o hábito é o ritual. No ritual, o hábito é implantando no corpo, já que ritual é composto de práticas que se repetem. Uma vez implantando no corpo, o hábito começa a governar a vida do indivíduo para além das práticas rituais. 

            Se ainda há dificuldade de se entender como o corpo é o meio primário para estruturarmos o mundo, o capítulo três, com a interação de Smith com Mark Johnson, deixará as coisas mais claras. A obra com a qual Smith dialoga é The Meaning of the Body [O Significado do Corpo]. O argumento fundamental de Johnson, usado por Smith, é que as formas corporais por meio das quais bebês e crianças dão sentido à sua experiência no mundo não são eliminadas quando o indivíduo se desenvolve cognitivamente. De fato, essas formas corporais é que tornam possíveis a conceptualização e o pensamento no campo das ideias. Johnson descreve esse desenvolvimento da seguinte maneira: um sistema de imagens que surgem da relação do corpo com o ambiente, que gera “metáforas” primárias, gerando, por sua vez, metáforas “conceituais”, até que se formem conceitos de fato. Essas “imagens” que surgem da relação do corpo com o ambiente são construídas por “mapas neurais”, ou seja, estruturas neurais formadas em nossos cérebros a partir de estímulos externos “absorvidos” por nossos corpos. Um exemplo citado por Smith na obra de Johnson é o da intimidade. A experiência humana de intimidade depende, em sua fase mais primitiva, da experiência sensorial de proximidade física. Essa proximidade física, por ser um estímulo corpóreo, estabelece conexões neurais que definem a “metáfora” primária a partir da imagem corpórea de proximidade. Assim, a metáfora primária resultante é INTIMIDADE PSICOLÓGICA É PROXIMIDADE FÍSICA. É interessante que tais “metáforas” primárias, que surgem nos estágios mais primitivos de nossa vida humana, portanto, inconscientes, determinam o fundamento sobre o qual se construirá o sistema mais complexo e elevado de interação cognitiva com o mundo. Como a nossa interação corporal com o mundo forma “imagens”, o ser humano, conforme Smith, deve ser classificado como uma “animal da imaginação”. Essas imagens, porém, não são estáticas, por isso o ser humano tem uma imaginação narrativa. Smith afirma, então, citando Paul Ricoeur, “participar no mistério da existência encarnada significa adotar o ritmo interno do drama” (p. 128). Essa disposição inata (ing. hardwired) para a narração/ história/ drama não tem a ver, de acordo com Smith, com a prioridade da narrativa como meio transmissor de informação útil para nossa preservação, conforme querem os darwinistas literários. Smith, acertadamente a meu ver, afirma que a narrativa carrega o seu significado em sua própria forma, como na poesia. 

            Gostaria de destacar algumas implicações que Smith apresenta desse estudo de Johnson. A primeira é que o ser humano é cativado por sua imaginação, pois é a partir dela que o ser humano determina de qual “história” faz parte. A segunda é que a entrada para a imaginação humana é o corpo, e o ambiente em que o corpo experimenta uma história em práticas corporais é a liturgia. A terceira, como resultado disso, é que nossa imaginação é disputada por liturgias, ou seja, práticas sociais estruturadas, diferentes. Nossa imaginação é capaz de conter “mundos” (i.e., sistemas de metáforas) diferentes, mas o “mundo” primário é aquele ao qual nos expomos mais. Por fim, Smith aplica isso ao que ele chama de fenomenologia da tentação. Nem todo pecado, diferente do que pensam intelectualistas, é uma decisão deliberada baseada em crenças falsas ou falta de conhecimento. Por isso, um remédio que considere somente o indivíduo é inadequado. O pecado tem mais a ver, conforme Smith, com uma participação maior nas liturgias seculares, que nos levam a assimilar a “cidade terrena” de amores desordenados, governados pelo amor próprio e a busca por dominação, do que a participação em liturgias que “alimentam” nossa imaginação com imagens de justiça e prosperidade características do reino de Deus. Assim, nos tornamos pessoas inclinadas (lembrando o termo de Bourdieu, habituadas) à ganância socialmente aceitável que nos torna tolerantes com a desigualdade e a exploração dos mais vulneráveis socialmente.

            Smith inicia o quarto capítulo, que serve de conclusão ao livro, com uma discussão sobreo caráter missional da adoração. A adoração cristã é concluída com um envio, portanto, tem uma função centrífuga. Ao mesmo tempo, a formação dos enviados se dá na própria adoração, por isso sua prática é centrípeta. Smith, que enfatiza o valor da missão na adoração cristã, precisa, assim, explicar a importância desse caráter centrípeto. A adoração cristã, explica Smith, em sua concretude local e suas práticas litúrgicas repetidas, é o que treina o participante na história da missão de Deus. O culto cristão, então, deve ser um ensaio, semana após outra, de como participar nessa história, e isso deve acontecer por meio de histórias, narrativas, imagens, símbolos, músicas, etc. Esse conjunto de práticas corporais que “recriam” a história de Deus com a sua criação é o que deveria constituir a adoração cristã. O ajoelhar-se em oração, por exemplo, carrega consigo toda uma forma de comportamento que devemos ter diante de Deus e do próximo, e esse gesto tão corporal sedimenta esse modo de viver no mundo no centro de nosso ser, por meio de nossos joelhos calejados. Assim, a adoração cristã não é somente distinta em seu “conteúdo”, mas também em sua forma e em seus gestuais, pois estas também contam a história de Deus com a sua criação. Trata-se de um tipo de demonstração física da história. No entanto, conforme o fundamento teórico apresentado por Smith nos capítulos anteriores, esses gestos e práticas corporais precisam ser repetidos constantemente, a fim de que essa história seja aprendida de cor, caso contrário, gestos e práticas corporais que contam outra história prevalecerão. Smith lembra que para a maioria dos ocidentais, as histórias, imagens e sons que formam o modo como se vive no mundo, provêm de grandes corporações comerciais com ação transnacional, mas planejamento centralizado, as chamadas “indústrias de cultura global”.

            Por fim, gostaria de fazer uma crítica ao Smith a partir de um questionamento que ele mesmo faz. Ele cita uma pergunta de John Witlvliet: “Se a participação na liturgia nos molda, por que participantes de longa data não se tornaram pessoas melhores?”. O próprio Witvliet dá uma resposta, com a qual Smith concorda: “Uma forma de nos bloquear do poder da adoração é pensar em ir para a igreja de forma supersticiosa”. Infelizmente, porém, isso soa como uma resposta intelectualista, exatamente aquilo que Smith refuta. Em todo o livro Smith defende uma visão do ser humano em seu aprendizado corporal, mas, nessa resposta, ele diz que uma “mentalidade” é capaz de superar o poder do corpo. A meu ver, isso indica uma inconsistência em Smith e eu acredito que sei o motivo para isso. Já em Desiring the Kingdom eu percebi que Smith não foi capaz de ter uma visão crítica da liturgia cristã, mesmo das mais tradicionais que possuem gestos, repetições, símbolos, etc. Em Imagining the Kingdom, por duas vezes, Smith condiciona o poder da liturgia cristã de ensinar o corpo a história de Deus (p. ex.: “desde que as práticas da adoração cristã carreguem, encarnem, encenem e ensaiem intencionalmente a história cristã”, p. 163). No entanto, ele nunca chega a avaliar criticamente as práticas da adoração cristã que não funcionam dessa forma. E aqui, não se trata de adoração cristã tradicional, com ritos, gestuais, imagens e sons, contra uma adoração cristã contemporânea com ênfase nas motivações interiores. A questão é que há práticas litúrgicas cristãs que não contam a história de Deus com a sua criação e há falta de práticas que possam contar essa história de forma mais concreta. Uma pergunta importante é: Qual é, então, essa história? Esse é um problema no livro, pois Smith nunca dá uma resposta direta. Eu diria que essa história é bem resumida em Filipenses 2 e sua ênfase na humilhação, no serviço e no amor generoso de Deus revelado em Jesus. Quais práticas corporais capazes de formar uma liturgia que conte essa história? Parece que muito das práticas litúrgicas cristãs não são suficientes.

            Outra implicação e aplicação do estudo teórico de Smith, mas que ele nunca menciona, é a relação entre adoração, evangelização e justiça. Se o fundamento teórico de Smith está certo, e eu acredito que está, a prática evangélica tradicional de evangelização como proclamação é fraca, ou até inútil para o aprendizado da história cristã. Essa história, contada verbalmente, não significa nada enquanto não tiver um corpo social, a igreja, que a manifeste. Da mesma forma, a ação cristã de justiça necessita um corpo social, a igreja, onde essa justiça é “ambientada” num contexto de culto, sem o qual se torna mero ativismo. De fato, conforme Stanley Hauerwas, “se a igreja tiver integridade litúrgica, não haverá necessidade de lidar com a relação entre adoração, evangelismo e justiça” (“Worship, Evangelism, Ethics: On Eliminating the ‘And’”, in Liturgy and the Moral Self, p. 105-6). Apesar de existirem bons exemplos a serem citados, como o ambiente do culto, que precisa ser mais doméstico (onde há mais repetições de práticas corporais e gestuais do que no lar?), a decoração do ambiente do culto, entre outros, o grande exemplo que tenho usado sobre isso é Eucaristia. Para Smith, a prática corporal de comer um pequeno pedaço de pão e beber um gole de vinho/ suco de uva, é o suficiente para ensinar a história cristã (como ele afirma em Desiring the Kingdom, pp. 198-203), inclusive como uma prática que enfatiza a justiça do reino de Deus, onde todos têm o que comer, e a reconciliação entre “inimigos”. No entanto, é claro que a prática litúrgica tradicional não conta essa história corporalmente, permanecendo no campo do simbolismo. Para tanto, seria necessário uma refeição de fato, uma mesa entre pessoas de status social desiguais, serviço mútuo à mesa e a participação de pessoas que não são membros da comunidade local. 

É necessário repensar diversas práticas litúrgicas da adoração cristã, mas isso nunca acontece nas páginas de Imagining the Kingdom (e nem de Desiring the Kingdom). Assim, eu tenho o livro de Smith como um fundamento antropológico, sociológico e litúrgico para inspirar críticas à adoração cristã e fomentar novas práticas que possam contar, encarnar, encenar e ensaiar essa história de humilhação, serviço e amor. Imagining the Kingdom é um bom fundamento teórico, mas precisa ser aplicado para muito além daquilo que Smith parece estar desejoso de aplicar.