14 de dezembro de 2013

Tempo Litúrgico: Ritmos e Cadências de Esperança

Tempo Litúrgico: Ritmos e Cadências de Esperança

Antes mesmo que tomemos nossos assentos, podemos perceber o ambiente de culto. Em particular, podemos notar as cores que adornam o espaço. Aqui já nos deparamos com uma instância em que nosso exercício vai contra um limite, perdendo o que seria particularmente notável se tivéssemos uma série de fotografias do mesmo espaço ao longo de um ano. Veríamos as cores mudando ao longo do tempo: de um roxo escuro, real a um negro lamentoso para um branco cintilante e triunfante. A um ponto em que podemos ver o culto de adoração extinto nas trevas das sombras, o povo partindo em sóbrio silêncio e mais tarde voltar ao espaço cheio de luz. Faixas e bandeiras e imagens no espaço moveriam e mudariam. Em suma, somente o espaço de culto contaria uma história que realmente organiza o tempo -- uma indicação de que aqui reside um povo com um senso único de temporalidade, que habita um tempo que é desconjunturado do tique-taque do tempo comercial ou a forma padrão do ano acadêmico.

Embora visualmente representado na cor e ornamento do espaço de culto, isso é ainda mais integralmente refletido no formato das práticas -- no foco da oração, nas disciplinas espirituais que são observadas, em rituais únicos que acontecem anualmente em vez de semanalmente (por exemplo, o acendimento das velas do Advento ou a imposição das cinzas). Esse povo relaciona-se com o tempo de um modo que é único e peculiar, expresso no que é conhecido como o ano litúrgico ou o Ano Cristão. Se lemos as práticas do culto cristão, concluiríamos que os cristãos são pessoas cujo ano não mapeia simplesmente o calendário da cultura dominante. (...) Então, a distinta marcação do tempo que é integral à adoração cristã histórica estabelece um senso de que a igreja é um “povo peculiar”, e o calendário litúrgico já constitui uma matriz que funciona como uma contra-formação ao incessante padrão 24/7 de nossa cultura comercial frenética.

Como assim? O que é tão peculiar acerca do tempo cristão? Primeiro, o tempo aqui gira em torno de uma pessoa -- Jesus de Nazaré, um judeu do primeiro século que “padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado. Desceu ao Inferno. E no terceiro dia ressuscitou dos mortos. Subiu ao Céus.” O próprio Credo Apostólico situa Jesus no tempo, no reino histórico de Pôncio Pilatos. A igreja não é um povo reunido por ideias, ensinos ou ideais abstratos; ela é o povo reunido para a pessoa histórica de Jesus Cristo. A igreja é o povo do Messias que adora um Deus que invadiu o tempo e nele habitou, que sofreu nas mãos de regimes históricos, e que ressuscitou “no terceiro dia”. Reunidos como um povo para adorar o Messias, que não flutua em algum céu esotérico, ahistórico, mas que deixou um entalho no tempo -- e o fará novamente.

Segundo, como um povo messiânico, a igreja é um povo que habita o presente com uma certa leveza do ser. Se somos estrangeiros e peregrinos em território estrangeiro (1 Pedro 2.11), então somos também peregrinos em um tempo estranho -- que sempre se relacionará com o presente um pouco como um viajante no tempo (não consigo de livrar de imagens de Marty em De Volta para o Futuro). Resistindo a um presentismo que pode apenas imaginar “viver para o momento”, a igreja é um povo com uma orientação para o futuro profundamente enraizada, um hábito que aprendemos de Israel. Durante o Advento, anualmente, o ano cristão ensina-nos novamente a nos tornar Israel, reconhecendo nosso pecado e necessidade, e então esperando, ansiando, chamando, e orando pela vinda do Messias, o advento da justiça, e a irrupção de shalom. Atravessamos o ritual de desejar o reino -- um tipo de impaciência santa -- promulgando novamente o anseio de Israel pela vinda do Rei. A repetição disso ano após ano é um treinamento em expectativa (e é reproduzido cada semana do ano na celebração da Eucaristia, pela qual “proclamamos a morte do Senhor até que ele venha). Portanto, o Advento sacode-nos da complacência presentista na qual podemos ser embalados. Em vez disso, somos chamados e formados para ser um povo de expectância -- procurando pela vinda (novamente) do Messias. Somos um povo futural que não procura escapar do presente, mas que se sentirá sempre de algum modo desconfortável no presente, assombrado pelo quebrantamento do “agora”.

O futuro pelo qual esperamos -- um futuro onde a justiça corre como água e a retidão como um ribeiro perene -- paira sobre o nosso presente e dá-nos uma visão do para que trabalhar aqui e agora enquanto continuamos a orar, “Venha o teu reino”. A temporalidade da adoração cristã -- macrocosmicamente expressada no Ano cristão, microcosmicamente expressa em particulares elementos cada Domingo -- treina nossa imaginação para ser escatológica, ansiando não pelo fim do mundo mas para “o fim do mundo como o conhecemos”*. Em adoração, provamos “os poderes da era vindoura” (Hb 6.5), que suscita em nós um anseio pelo reino vindouro, porque esse gosto é também um pouco de uma provocação: ele dá-nos o suficiente de um senso do que está vindo que nós olhamos ao redor para nosso mundo partido e vemos todas as maneiras em que o reino ainda não chegou. “Vem, Senhor Jesus!” e “Até quando, Senhor?!” são orações de um povo futural.

Ao mesmo tempo, os ritmos do culto cristão e do ano litúrgico estendem-nos para trás. Eles são práticas de recordação -- outro hábito que aprendemos de Israel. Lembramos com gratidão os atos de redenção de Deus no êxodo (Sl. 78) e na cruz. Quaresma e Páscoa convidam-nos a voltar e lembrar o poder desencadeado na cruz e na ressurreição -- um poder que continua a irromper no presente (Fp. 3.10-11). O próprio Ano Cristão é uma antiga herança lembrando-nos de que somos parte de um povo que é mais velho que nosso presente, que somos herdeiros de uma tradição. Portanto, somos constituídos como um povo que vive entre dois tempos, lembrando e esperando ao mesmo tempo. A cada semana esse “estar no meio” é executado na Eucaristia, que convida-nos a “Fazer isso em memória de mim” e a fazer assim para “proclamar a morte do Senhor até que ele venha”. (...)

Há um sentido no qual os cristãos são treinados pela liturgia para ser um povo “que nasceu fora de tempo”, como Paulo diz de si mesmo (I Co 15.8). Isso não é porque somos tradicionalistas  que servil e nostalgicamente anseiam pelas veredas antigas (Jr. 6.16). Contudo, há um senso profundo em que a igreja é o povo chamado para resistir o presentismo incorporado na tirania do contemporâneo. Somos chamados a ser um povo de memória, que é moldado por uma tradição que é milênios mais antiga do que as últimas paradas da Billboard. E somos chamados a ser um povo de expectativa, orando por e ansiando por um reino vindouro que irromperá sobre nosso presente como um ladrão na noite. Somos um povo estendido, cidadãos de um  reino que é tanto mais velho quanto mais novo que qualquer oferedido pelo “contemporâneo”. As práticas do culto cristão durante o ano litúrgico formam em nós uma espécie de “alma velha” que é perpetuamente apontada para o futuro, ansiando por um reino vindouro, e buscando ser tal povo estendido no presente que é um antegosto do reino que vem.

15 de abril de 2013

Por que nos Reunimos - Mike Cosper


Uma reunião corporativa é um diálogo entre o povo de Deus e a Palavra de Deus, a oportunidade de lembrar a história de que são parte, renovar os seus compromissos e ser enviado mais uma vez em seu mundo. Aqui estão quatro ritmos que ilustram este diálogo durante reuniões de adoração:


EXPERIMENTE O EVANGELHO

LEMBRANDO A HISTÓRIA

AÇÕES NA LITURGIA

"Deus é santo"
Criação
Adoração
"Nós somos pecadores"
Queda
Confissão e/ou lamento
"Jesus nos salva"
Redenção
Absolvição, ação de graças, petição.
"Jesus nos envia"
Consumação
Comunhão compromisso / bênção/encargo
Este é o coração da liturgia da Igreja, uma palavra que reuniu muito zumbido, muito do qual eu considero inútil. "Liturgia" é pronunciada em sussurros tensos, estendida como uma espécie de código místico, uma forma de garantir a transcendência ou enraizar-nos na tradição. Mas, francamente, todos estes motivos são horríveis para abraçar liturgia.

Essas tradições foram formadas a partir de um desejo pastoral de ver a igreja moldada pelo evangelho, sua imersão na história a cada semana, permitindo que o corpo se lembre de quem Deus é, o que ele fez em Cristo, e que ele promete sobre o nosso futuro.


O CULTO É LEMBRANÇA

Se há uma coisa que é clara sobre o povo de Deus, é esta: nós somos um bando que se esquece. Adão e Eva se esqueceram de Deus, mesmo no meio do paraíso. Os patriarcas se esqueceram dele enquanto bebiam, se prostituíam, e mentiam em seu caminho em direção a seus destinos. Israel se esqueceu dele, logo que a lama da passagem pelo Mar Vermelho se secou em suas sandálias. Esquecemo-nos de novo e de novo.

É por isso que um dos mais frequentemente repetidos comandos na Bíblia pode ser resumida com uma palavra: lembrar. Repetidas vezes, aos patriarcas, para Israel e para a Igreja, nos é dito, "Lembra-te." Mesmo os Dez Mandamentos são precedidos por um lembrete: "Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirou do Egito”.

"Lembre-se de sua história", diz Deus. "Lembre-se do que eu fiz. Agora ouça meus comandos".


CONECTANDO PASSADO, PRESENTE E FUTURO

Quando Deus chama-nos a lembrar, ele nos liga ao passado e ao futuro em um único pensamento. Estamos conectados a um legado inteiro da fé, que se estende desde o jardim para a Nova Jerusalém, e conectando-nos com o seu povo através dessa história. As promessas de Deus estão enraizados em nossa herança de fé e antecipam seu cumprimento, e essa antecipação é um presente poderoso para aqueles que estão sofrendo, lutando e tropeçando ao longo de seu caminho.

A Recordação está no coração da adoração do Novo Testamento. Onde antes o povo de Deus se reunia principalmente para estar com Deus no templo, agora nos reunimos primariamente para estar com o povo de Deus e para nos lembrar dele. Nós nos reunimos para deixar sua palavra habitar entre nós ricamente (Colossenses 3:16). Nós nos reunimos para encorajar um ao outro enquanto "o dia" se aproxima (Hebreus 10:25). E nos reunimos, como teólogo David Peterson diz em Engaging with God, para "falar a verdade em amor" (Ef 4:15) - um comando mais sobre a confissão congregacional compartilhada do evangelho do que acerca da confrontação ousada entre duas pessoas (como o primeiro é comumente tratado).


CONTANDO A HISTÓRIA


Se você olhar para quase qualquer tradição da igreja de longa data, você vai ver que seus encontros tiveram apenas esta intenção - o encontro em si conta uma história. Ele começa com Deus encontrando seu povo, ao que o povo responde com louvor e adoração. Ver a Deus nas Escrituras quase sempre resulta em um clamor por misericórdia, e assim a igreja responde ao seu próprio louvor com um calmor de confissão ou um lamento acerca do pecado no mundo. A isso, as Escrituras respondem com uma garantia de que, em Cristo, nossos pecados são perdoados. Somos alimentos por sua palavra, e enviados novamente em missão.

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Para saber mais sobre o evangelho e o culto, confira o novo livro de Mike Cosper,
Rhythmns of Grace. Original: 

Recomendação de James K. A. Smith:

24 de março de 2013

Redimindo o Ritual

James K. A. Smith

Protestantes tendem a travar com a menção da palavra “Ritual”. A palavra é um gatilho que evoca uma história da Reforma que se afundou em nossos ossos. Nós associamos ritual com a ortodoxia morta da "vã repetição", a negação da graça, a tentativa de ganhar a salvação, marcar pontos com Deus, “passando pelas moções", e várias outras formas de insinceridade espiritual.


E ainda assim afirmamos, e até celebramos, ritual em outras esferas. Nós reconhecemos que a busca da excelência muitas vezes exige devoção a um regime de rotinas e disciplinas que são formativas precisamente porque são repetitivas. Qualquer pessoa que tenha dominado uma tacada de golfe ou uma fuga de Bach é um animal ritual: ningúem simplesmente alcança tal excelência de outro modo. Em ambos os casos, o ritual é marcado pela repetição encarnada. O ritual recruta nossa vontade através do nosso corpo: os dedos do violoncelista se habituam ao movimento através de escala após escala; todo o corpo do jogador de golfe é treinado por um milhão de movimentos de prática.


Porque nós somos criaturas de hábito encarnadas -- Deus nos criou assim --, somos profundamente moldados pelo ritual. É por isso que o ritual pode de-formar-nos também: conhecemos em primeira mão o poder destrutivo de rotinas e ritmos que podem manter-nos cativos e fazer-nos ser quem não queremos ser.


Em todos esses casos, intuímos que os rituais não são apenas algo que fazemos, eles fazem algo a nós. E o seu poder formativo trabalha o corpo, e não apenas a mente. Então por que devemos ser alérgicos ao ritual quando se trata de nossa vida espiritual? Poderíamos resgatar o ritual?


Habitações do Espírito


Nossa avaliação negativa do ritual deriva de um par de premissas erradas. Primeiro, quando se trata de devoção religiosa, tendemos a ver a observância ritual como mera obediência ao dever, uma forma de marcar pontos com Deus e ganhar crédito espiritual. Vemos ritual como um esforço de baixo para cima -- e "esforço" começa a soar como "obra". Não leva muito tempo antes de isso tudo parecer parte de um elaborado sistema de "salvação pelas obras".


Vamos admitir que algumas pessoas religiosas, sem dúvida, observam o ritual com tal intenção equivocada. Nós nos unimos a Lutero e Calvino e aos Reformadores em rejeitar tais tentativas supersticiosas de bajular Deus. Mas por que devemos nos contentar com simplesmente identificar ritual com "obras de justiça"?


Nós temos uma visão mais nuançada do ritual em outras esferas da nossa vida. Podemos dizer quando alguém está "apenas fazendo os movimentos", mas não vemos os movimentos em si mesmos como o problema. Nós conhecemos a diferença entre a estudante de piano praticando escalas, porque ela "tem que praticar" e a estudante que faz isso em busca da excelência.


Se eu me comprometer com o "ritual" de tocar escalas durante uma hora por dia, durante anos a fio, é porque eu sei que este é um caminho para que eu me torne alguém que eu quero ser. Não é apenas um exercício ascendente da minha parte, é também uma espécie de força descendente que me faz, me molda e me transforma. É uma maneira de eu ser apanhado na música - um caminho para meus dedos e mãos e mente e imaginação serem recrutados para a sinfonia que eu quero tocar.


Se isso é verdade em um nível "natural", por que não deveria também ser verdade para a nossa vida espiritual? A devoção cristã histórica lega a nós rituais e ritmos e rotinas que são o que Craig Dykstra chama de "habitações do Espírito" -- práticas concretas que são condutoras do poder do Espírito e da graça transformadora de Deus.


Pense em alguns rituais do culto reformado. Semana após semana, algumas congregações são convidados a se levantar para ouvir a Palavra de Deus. Por quê? Essa mudança de postura corporal envia um pequeno sinal inconsciente: Ouçam -- algo importante está por vir. Depois de falar a Palavra, o pregador anuncia: "Esta é a Palavra do Senhor." A que o povo responde: "Graças a Deus." Você pode dizer isso sem pensar. Mas isso não significa que não está fazendo alguma coisa. Esse pequeno ritual treina o seu corpo para aprender algo sobre a autoridade da Palavra de Deus, e a responder em gratidão.


Rituais carregados pelo Espírito são formas concretas em que Deus se apodera de nós, reorienta-nos, e capacita-nos a ser portadores de sua imagem. São maneiras para o Espírito nos encontrar onde estamos, como criaturas encarnadas.


Adoração é Para Corpos


Uma segunda razão pela qual gente Reformada desvaloriza o ritual é porque temos a tendência de reduzir a fé cristã a um conjunto de crenças e os crentes a seres pensantes principalmente.


O filósofo canadense Charles Taylor descrever esse intelectualismo como um dos resultados Frankensteinianos da Reforma Protestante -- uma espécie de monstro não intencional, que ultrapassa as boas intenções dos reformadores em si. Justamente criticando a superstição e as visões "mágicas" do ritual, os reformadores desencadearam um impulso em direção ao que Taylor chama de "excarnação". Uma des-encarnação da vida espiritual, que reduziu a "religião verdadeira" à “crença correta”.


O resultado final foi uma reconfiguração completa da adoração e da devoção. O culto cristão não era mais um exercício integral que recrutava o corpo e tocava todos os sentidos. Em vez disso, os protestantes conceberam a adoração como se os crentes fossem pouco mais do que os cérebros-em-uma-estaca. O alvo principal era a mente, os meios primários eram um sermão-palestra, e o objetivo principal era depositar as doutrinas e crenças certas em nossas cabeças para que pudéssemos então sair ao mundo para cumprir a missão de Deus.


O problema com isso, no entanto, é que não somos criados como cérebros-em-uma-estaca; nós fomos criados como criaturas encarnadas, táteis, viscerais que são mais do que processadores cognitivos ou máquinas de crenças. Como portadores encorpados da imagem de Deus, o nosso centro de gravidade está localizado tanto em nossos corpos como em nossas mentes. É precisamente por isso que o corpo é o caminho para o nosso coração, e essa intuição "encarnada" há muito informou a rica história das disciplinas espirituais e da formação litúrgica.


Um pouco desta intuição encarnada já molda o que fazemos. Congregações que celebram a Ceia do Senhor semanalmente (como fizeram na Genebra de João Calvino) têm um profundo apreço pela natureza tátil da prática. Aqui está um ritual que retrata o evangelho e que ativa todos os nossos sentidos: paladar, tato, olfato, audição e visão. É um ritual cuja repetição é um dom, não um aborrecimento. Através de nossa imersão nele, o evangelho se afunda em nossos ossos. Nós absorvemos a história da graça de Deus de uma maneira que nem sequer percebemos.


Ou considere o valor de um simples ritual de confissão que envolve tanto a repetição quanto corpo, e que pode ser especialmente apropriado para a Quaresma. Ao adotar uma oração padrão de confissão, o culto constantemente coloca uma oração nos lábios que se infiltra em nossos corações e sai de nossos corações ao longo da semana. Quando nos ajoelhamos para confessar, a nossa postura física tanto expressa quanto estimula a humildade diante de Deus. Conhecemos a graça de Deus de uma forma diferente porque ela está inscrita em nossos corpos.


Não precisamos ter medo do ritual. Se apreciarmos o fato de que Deus nos criou como criaturas encarnadas, incorporadas, então vamos reconhecer que sua graça carinhosamente se estendeu a nós de maneira que encontra-nos onde estamos: na prática de rituais carregados pelo Espírito, tangíveis e encarnados. Reenquadrados desta forma, poderemos ser capazes de redimir os rituais como dons de Deus para o povo de Deus.


Sobre o autor:
James K. A. Smith é professor de filosofia no Calvin College em Grand Rapids, Michigan, onde ensina no departamento de estudos congregacionais e ministeriais.


Do mesmo autor: Santificação para a Vida Ordinária (iProdigo)

18 de março de 2013

A Virtude da Castidade

N. T. Wright

Além dessas [virtudes da humildade e da paciência] há a castidade. Muitos se surpreendem ao descobrir que os cristãos antigos (assim como os judeus) eram considerados ultrapassados com relação à cultura nessa área. Praticamente todo mundo na antiguidade assumia que as pessoas, para dizer de forma direta, deveriam ter o máximo de sexo possível. Casamento (entre um homem e uma mulher) era uma coisa, e muitos nem sequer queriam ser fiéis ou, por algum motivo, temiam a traição. O principal problema com o adultério, contudo, não era moral: era o cônjuge enciumado. Ligações sexuais fora do casamento eram comuns e aceitas. Os abortos eram procurados com frequência e os filhos indesejados eram abandonados para os animais selvagens comerem. Os problemas que restavam eram resolvidos com facilidade, sendo que a principal dificuldade era a da família tentando encontrar um marido para uma filha com um “passado”. Houve tabus diversos, em vários tempos e lugares. Em Atenas, por exemplo, havia uma escalada detalhada do que era aceitável quando um homem tinha relacionamento homossexual com outro mais jovem. Todavia ninguém considerava o homossexualismo, inclusive parcerias matrimoniais por toda a vida, como estranho, nem repreensível. Platão chegou a celebrar essas parcerias como a forma mais elevada de amor (em Simpósio). Ninguém se preocupava com outras práticas sexuais bem diferentes, como a relação com animais. Muitas dessas coisas aconteciam nos templos pagãos e em volta deles, mas não eram limitadas a eles.



Os primeiros cristãos compartilhavam a visão dos judeus, da antiguidade e atuais, de que esse comportamento era tenebroso, desumanizador e distorcia a essência do significado da vida humana. Acreditavam que o sexo foi concedido para prazer mútuo, entre marido e esposa, voltado para o exterior (para o exterior porque, como o amor de Deus, gera nova criação, tanto em filhos quanto na criação de um lar caloroso, seguro e hospitaleiro). Esse, e não um preconceito arbitrário ou uma repressão pelo medo, foi o motivo de rejeitarem o costume generalizado em seu mundo. Eles acreditavam terem sido chamados para lançar nessas trevas a luz de uma forma diferente de viver.



O contraste marcante entre a crença e o comportamento deles e o ambiente que os cercava nos leva de volta a Jesus, que alertou, em passagem que já vimos, contra o comportamento impuro que emerge de forma espontânea do fundo da personalidade humana. Os termos com que ele se expressa, fazendo eco e endossando proibições importantes do Antigo Testamento, deixando claro que, a despeito de impressões contrárias no meio do povo, ele endossava com firmeza a proibição judaica ancestral quanto a relacionamento sexual de qualquer tipo fora do casamento por toda a vida entre um homem e uma mulher. Todo o Novo Testamento mostra que o motivo da vida cristã é refazer os seres humanos à imagem de Deus; quando seguimos a ideia até sua raiz, fica claro que o par que carregava a imagem era macho e fêmea, chamados para deixar os outros e se apegarem um ao outro. Não é à toa que teólogos de todos os tempos veem essa união humana como sinal do compromisso inabalável do Deus criador com sua criação. Não é surpresa que quando céu e terra finalmente se unem, no fim do livro de Apocalipse, a imagem usada é a do casamento. Esse é o telos, o alvo de toda a nossa existência. A virtude agarra o alvo pela fé e apreende as lições para viver no presente antecipando genuinamente o futuro, com fidelidade no casamento e abstinência fora dele.



A cultura ocidental, composta em grande parte por nações pelo menos nominalmente cristãs, foi em parte colonizada com a visão cristã sobre casamento e sexualidade -- mas a maioria, não. Tentativas de forçar a abstinência vêm e vão, sendo substituídas, também de forma intermitente, por indulgência quase que forçada (pense no século 17, com a restauração que sucedeu os puritanos; ou a rebeldia contra os padrões considerados “vitorianos” após a Primeira Guerra Mundial, embora a história mostre que durante grande parte do século 19 a vida sexual na Europa era tão sem restrições quanto em qualquer outra época). Os que tomam os ensinos de Freud de forma superficial entendem que o sexo está por trás de tudo e, assim, somos incapazes de resistir. Nem devemos tentar. O Darwinismo popular insiste que o que importa é a força vital que nos induz a propagar nossa espécie, então é melhor aceitar. As duas correntes criaram a atmosfera em que, na mente popular, qualquer convite sério a se restringir a forma ou as circunstência da expressão sexual encontra não discussão séria, mas apenas desprezo. Um correspondente de um jornal popular outro dia exclamou: “Ah! Toda essa conversa sobre abstinência vem de uns lunáticos de direita, mal orientados. Logo a biologia vai se manifestar e eles vão agir como todo mundo”. Em outras palavras: a biologia reina, temos impulsos que somos incapazes de controlar, e resistir vai contra a saúde e a natureza. Múltiplas parcerias sexuais -- e, agora, até vários relacionamentos quase contratuais (poliamor, com três ou mais pessoas em um acordo de relacionamento multidirecional de sexo) -- começam a ser comportamentos aceitáveis. Contracepção fácil e aborto abriram as comportas para uma nova rodada de licença sexual nas últimas décadas -- licença que nem a crise da aids conseguiu revogar.



Os cristãos, porém, sempre afirmaram que o autocontrole é uma das variedades de fruto do Espírito. Sim, é difícil. Sim, é necessário se dedicar para descobrir por que é mais difícil resistir a determinadas tentações, em certos momentos e lugares. O motivo é que a castidade é virtude: não é, primeiro e acima de tudo, uma regra que se decide seguir ou quebrar (embora certas regras sejam bem claras nas Escrituras); com certeza não é algo que se calcula segundo um princípio, como “a maior felicidade possível para o maior número de pessoas” (até porque a esmagadora felicidade de curto prazo da maioria dos relacionamentos sexuais influenciaria artificialmente o resultado); e, em paticular, como Jesus mesmo indicou, não surgirá se seguirmos o curso do que vem naturalmente. É aí que os celibatários, como Jesus e muitos outros heróis e heroínas desconhecidos em comunidades monásticas e muitos lugares menos óbvios, descobriram a alegria de uma “segunda natureza” de autocontrole que grande parte de nossa cultura, como a maioria do mundo antigo, jamais chegou a imaginar. No lado inverso, como sabem os que fazem atendimento pastoral nas famílias e encontram pessoas que seguem os hábitos da sociedade, as mágoas e feridas causadas por esses hábitos são profundas, demoram a sarar e prejudicam a vida. Muitos dizem que a Igreja é estraga-prazeres, por protestar contra a liberdade sexual. No entanto, o verdadeiro fim da alegria vem com a busca exclusiva do prazer. Como no uso dos cartões de crédito, a etiqueta do preço fica escondida a princípio, mas os débitos físicos e emocionais causados demandam um longo tempo para serem sanados.



Aqui, paciência e humildade, até então à margem, voltam ao jogo. O impulso frenético pela intimidade sexual é parte do desejo de se expressar, de se desenvolver, de mostrar quem se é e como pretende se comportar. “Não”, diz a humildade, “não é esse o caminha para descobrir seu verdadeiro eu. Você o descobre ao abrir mão de você mesmo”. “Exatamente”, concorda a paciência, “satisfazer-se por impulso é menosprezar você mesmo e todas as outras pessoas”. As virtudes se relacionam. Se quiser uma delas, você tem de desenvolver todas.



O mesmo vale, claro, para a caridade, que, como notamos, Paulo descreve como a virtude que se deve colocar sobre e em volta de todas as outras, como um cinto que mantém todo o resto no lugar certo (Cl 3.13). Amor (a palavra que normalmente usamos, embora seja imprecisa, pois o significado de “caridade” encolheu) é o que capacita a paciência, a humildade e a castidade a permanecerem no devido lugar, porque o amor respeita o outro e deseja o melhor para ele. Por sua vez, o amor é sustentado, conforme afirma Paulo em sua famosa passagem, pela fé e pela esperança, tudo junto olhando para Deus, o criador e recriador, e para as promessas dele, asseguradas em Jesus Cristo.





Fonte:  Eu Creio, e Agora, p. 246-250

Autor de Eu Creio, e Agora,  Surpreendido pela EsperançaSimplesmente Cristão e O Mal e a Justiça de Deus, Os Desafios de Jesus, O Caminho do Peregrino, Seguindo Jesus, Judas e o Evangelho de Jesus,  Paulo: Novas PespectivasN.T. Wright é um dos mais conhecidos e respeitados estudiosos do Novo Testamento da atualidade. Foi Bispo anglicano de Durham, na Inglaterra, professor das universidades de Cambridge e Oxford por vinte anos e é professor visitante de universidades como Harvard Divinity School, nos Estados Unidos, Universidade Hebraica de Jerusalém e Universidade Gregoriana em Roma, entre outras. É autor de mais de quarenta livros e articulista de jornais como The Times, The Independent e The Guardian.