9 de março de 2012

A Catolicidade da Igreja

Alister E. McGrath 

Nas línguas modernas européias, o termo "católico" confunde-se muitas vezes, e de modo especial nos círculos não-religiosos, com a Igreja "Católica Romana", ou seja, o ramo do cristianismo que aceita a autoridade do papa e põe ênfase especial na continuidade histórica e institucional entre a Igreja do tempo presente e a Igreja da época dos apóstolos. Embora essa confusão seja compreensível, deve-se afirmar que não só os católicos romanos é que são católicos, da mesma forma que não somente os escritores ortodoxos orientais é que são ortodoxos em sua teologia. Na verdade, muitas Igrejas protestantes, ao se ver um tanto embaraçadas pelo uso do termo "católica" em sua profissão de fé, substituíram esse termo pela palavra "universal", não menos contenciosa, argumentando que o adjetivo "universal" torna mais inteligível a crença em uma "Igreja universal e apóstólica".

O termo "católico" vem do grego kath' holou (relativo ao todo). Do grego a palavra passou para o latin como catholicus com sentido de "universal ou geral". Este significado da palavra é mantido na expressão inglesa catholic taste (que significa gosto abrangente e não gosto pelas coisas que são da Igreja Católica). Muitas versões mais antigas e algumas atuais da Bíblia muitas vezes referem-se a algumas cartas do Novo Testamento (como as cartas de Tiago e João) como "epístolas católicas", para significar que eram dirigidas aos cristãos em geral, diferentemente das epístolas de Paulo, dirigidas à necessidade e às situações de Igrejas particulares, como a Igreja de Roma ou a Igreja de Corinto.

O sentido desdobrado da palavra pode ser notado mais claramente, talvez, nos escritos catequéticos de Cirilo de Jerusalém (entre aproximadamente 315 e 386), no século IV. Na conferência catequética XVIII, Cirilo apresenta vários sentidos da palavra "católico":
A Igreja é assim chamada "católica" porque se expandiu por todo o universo habitado, de uma extremidade a outra extremidade da terra, e também por ensinar a doutrina em sua totalidade (katholikos) e sem deixar nada de fora de toda a doutrina que o povo precisa conhecer com relação às coisas visíveis e invisíveis, seja no céu, seja na terra. É chamada também "católica" porque traz à obediência todo tipo de pessoas, governantes ou governados, intruídos e iletrados. Enfim, a Igreja oferece um remédio de cura universal (katholikos) para todo tipo de pecado.
Como se pode entender, Cirilo usa o termo "católico" em quatro acepções, que merecem ser explicadas.

1. Católico significa "propagado por todo o mundo habitado". Aqui Cirilo observa o sentido geográfico da palavra. A noção de "plenitude" ou "universalidade" é entendida, neste casoo, como ordem de propagação da Igreja por todas as regiões do mundo.

2. Católico significa "sem excluir nada". Com esta expressão, Cirilo exprime a "catolicidade" da Igreja que envolve a proclamação e a explicação completa da fé cristã. É um convite para considerar a totalidade da pregação e do ensinamenteo do Evangelho.

3. Católico significa que a Igreja estende sua missão e seu ministério a "todo tipo de pessoas". Aqui Cirilo aborda um tema essencialmente sociológico. O Evangelho e a Igreja são destinados a todo tipo de seres humanos, independentemente de raça, gênero ou condição social. Podemos ver aqui um eco claro da famosa afirmação de Paulo de que "não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus" (Gl 3.28)

4. Católico significa que a Igreja oferece e proclma "um remédio universal e cura para todo tipo de pecado". Aqui Cirilo faz uma afirmação soteriológica: o Evangelho e a Igreja que proclama o Evangelho podem atender a todo tipo de necessidades e dificuldades humanas. A Igreja pode oferecer um antídoto a todo tipo de pecado.

Os vários singnificados do termo "católico" também são explicados com clareza por Tomás de Aquino ao tratar do Credo dos Apóstolos a respeito da doutrina da Igreja. Em sua análise, Tomás de Aquino distingue três aspectos essenciais da idéia de "catolicidade".
A Igreja é católica, isto é, universal, primeiramente com respeito ao lugar, porque se encontra em todo o mundo (per totoum mundum), contrariamente ao que ensinam os donatistas. Está escrito em Romanos 1.8: "No mundo inteiro se faz o elogio da vossa fé"; Marcos 16.15: "Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa-nova a toda criatura" [...]. Em segundo lugar, a Igreja é universal com respeito à condição do povo, porque ninguém é rejeitado, seja senhor ou servo, homem ou mulher. Lê-se em Gálataas 3.28: "Não se distingue entre homem ou mulher". em terceito lugar é universal com respeito ao tempo. Alguns afirmam que a Igreja deve durar até um certo tempo, mas isto é falso, porque essa Igreja teve início desde o tempo de Abel e durará até o fim do mundo. Texto de Mateus 28.300: "Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos". E, após o término do tempo, a Igreja permanecerá nos céus.
Convém observar que aqui se entende a catolicidade como universalidade geográfica, antropológica e cronológica.

2 de março de 2012

Eucaristia Além do Tempo

N. T. Wright


Entre um ritual pretensamente mágico de um lado, e um simples memorial de outro, uma visão mais bem fundamentada historicamente nos faz recordar como as refeições sagradas judaicas (principalmente a Páscoa, que deu origem à eucaristia) cumpriam sua função. Mesmo quando Jesus celebrou a Páscoa, os discípulos não imaginavam que estavam fazendo algo diferente da celebração original. Durante a celebração da Páscoa, os judeus costumavam dizer: "Esta é a noite em que o Senhor nos tirou do Egito", o que torna as pessoas sentadas ao redor da mesa não apenas herdeiros distantes da geração do deserto, mas também parte do mesmo povo. Tempo e espaço se unem. No mundo dos sacramentos, passado e presente são uma só coisa. Juntos, eles apontam para a libertação, que acontecerá no futuro.


Na eucaristia, essa dimensão futura é trazida diretamente até nós, por meio da morte e da ressurreição de Jesus Cristo. Partimos o pão para compartilhar o corpo de Cristo; fazemos iso em memória dele e assim nos tornamos, por um momento, como os discípulos assentados ao redor da mesa da última ceia. No entanto, se pararmos aqui, estaremos dizendo apenas a metade sobre a eucaristia. Para compreendermos melhor o seu significado, devemos considerá-la em termos da chegada do futuro de Deus no presente, e não apenas como o prolongamento do passado de Deus (ou do passado de Jesus) em nosso presente. Não estamos simplesmente relembrando a morte de Jesus, ocorrida há muito tempo, mas celebrando a presença do Senhor vivo. Ele vive, por meio da ressurreição, precisamente como aquele que vai à frente na nova criação, no novo mundo transformado, como aquele que é, em si mesmo, o seu protótipo. O Jesus que se entregou a nós como comida e bebida é também o início do novo mundo de Deus. Na comunhão, somos como os filhos de Israel no deserto, provando o fruto colhido da terra prometida. É o futuro vindo nos encontrar no presente.
 (...)


O Novo Testamento oferece uma explicação muito melhor sobre a nova criação. Romanos 8 é um bom ponto de partida: vemos ali que a criação está gemendo, com dores de parto, enquanto espera pela redenção. No entanto, uma parte da velha criação já foi transformada e está liberta do jugo da deterioração: o corpo de Cristo, o corpo que morreu na cruz e que agora está vivo, com um tipo de vida que a morte não pode jamais alcançar. Jesus nos precedeu na nova criação de Deus e, quando olhamos para trás, para sua morte, através das lentes que ele mesmo forneceu - ou seja, a refeição que ele partilhou na noite em que foi traído -, descobrimos que ele vem até nós por meio dos símbolos, o pão e o vinho, que são retirados da história de Cristo e se tornam vasos que transportam o novo mundo de Deus e os eventos salvadores que nos capacitam a compartilhá-lo.


Dentro desse contexto, do entendimento da criação e da nova criação a partir da verdadeira Páscoa, podemos entender melhor a Eucaristia como a antecipação do banquete que será oferecido quando forem criados o novo céu e nova terra, a saber, as bodas do Cordeiro (...) O futuro de Deus está começando, o advento futuro está vindo ao nosso encontro. Toda eucaristia é um pequeno Natal e uma pequena Páscoa. 


Isso não é mágica. A mágica tenta convencer pela astúcia, visando poder ou prazer pessoal, mas Deus nos concede pela graça, por meio da fé para promover santidade e amor. A ressurreição de Jesus e a promessa de um novo mundo fornecem a estrutura ontológica, epistemológica e, acima de tudo, escatológica, dentro da qual podemos entender a eucaristia de uma nova maneira. Não devemos nos privar da esperança que vem do futuro de Deus para nos sustentar no presente. O novo mundo de Deus está começando. Se não conseguimos enxergar isso, estamos negando o poder eficaz da vida cristã.




Surpreendido pela Esperança, 288-290


foto: Literatura Teológica