J. Todd Billings*
Em 1536, um exilado da França de 27 anos dirigiu-se ao Rei católico romano Francis a respeito de um novo movimento religioso a que Francis se opunha. Este exilado se esforça para negar que o ensino do movimento é, de fato "novo" e "de nascimento recente." Ao contrário, diz o estudioso humanista, o evangelho pregado neste movimento é tão "antigo" como o evangelho de Paulo. Além disso, "se a disputa fosse decidida por autoridades patrísticas, a maré da vitória viria para o nosso lado”¹. Para o jovem Jean Calvin, a reforma da igreja provocou uma redescoberta das escrituras - e uma redescoberta da teologia bíblica dos escritos patrísticos da igreja dos primeiros cinco séculos.
Assim, não é de se estranhar que, à medida que o ministério e pensamento de Calvino se desenvolvia, ele fez um grande esforço para aprofundar seu conhecimento da teologia patrística e difundir esse conhecimento para outras pessoas. Em um movimento que iria agradar os anglo-católicos de hoje, Calvino promoveu a ideia radical de que os sermões de João Crisóstomo deveriam ser disponibilizados no francês vernáculo. Não apenas os estudiosos deveriam ler os pais da igreja, mas os cristãos comuns - assim como os cristãos deveriam também ler a Bíblia. Claro, Calvino não concordava com tudo o que ele leu em obras patrísticas - na verdade, isso teria sido impossível, dada a diversidade de pensamento do período patrístico. Mas a Reforma foi a restauração da teologia bíblica dos primeiros séculos da Igreja - e até o final de sua vida, com a publicação de “A Verdadeira Comparticipação da Carne e do Sangue de Cristo” - Calvino continuou a se aproximar mais e mais dos "antigos pais” dos primeiros cinco séculos, que eram “a melhor era da igreja”².
O "Católico" do "Calvinismo Católico"
Em nossos dias, a tradição reformada está em extrema necessidade de recuperar a dimensão católica da nossa herança. Calvino e outros reformadores, de fato, não procuraram a revisão radical de uma doutrina nicena da Trindade e de uma cristologia calcedoniana. Ademais, a teologia sacramental de Lutero, de Calvino, e até mesmo a de Zwinglio eram muito mais próximas da teologia patrística de Santo Agostinho, por exemplo , do que o memorialismo altamente cognitivo que ocorre em muitas das igrejas reformadas hoje.
As confissões reformadas - especialmente a Belga na tradição holandesa e a Segunda Helvética na tradição Presbiteriana - dão um lugar de destaque ao afirmar os principais ensinamentos patrísticos sobre a Trindade e Cristo. Isto não é um acidente. Não é como se os reformadores estivessem principalmente preocupados com questões de salvação e de graça, e assim eles sem pensar afirmassem a ortodoxia patrística sobre Deus e Cristo. Ao contrário, os reformadores - e a Escolástica reformada nos séculos seguintes - sabiam sobre outras alternativas. Eles não se limitaram a afirmar os primeiros concílios ecumênicos porque eram "parte da tradição" e, assim, "ortodoxos". Eles os afirmaram, porque eles acreditavam - em contraste com alguns desafios ardentes de seus contemporâneos - que os credos dos concílios eram bíblicos, e que estes credos eram, de fato, verdadeiros. Além disso, para os primeiros teólogos reformados como Calvino, essas confissões trinitárias e cristológicas ajudaram a embasar uma alta teologia sacramental, para nutrir e fortalecer o corpo de Cristo, a igreja.
A perda do “católico” no Cristianismo americano
O cristianismo americano tornou-se preocupado com as questões que - intencionalmente ou não - tendem a marginalizar esses elementos "católicos". Por um lado, algumas igrejas continuam a influência do revivalismo americano, colocando a doutrina da salvação no centro do culto cristão (e da teologia leiga): Você está salvo? O que significa ser salvo? Você continua a experimentar os sinais desta salvação? Salvação, graça e teologias da santificação representam o "mero cristianismo" que realmente importa. Você acredita que a Ceia do Senhor é um "sacramento" e um "meio de graça?" É melhor manter essas crenças "não-essenciais" para si mesmo, é-nos dito. Você acredita na Trindade ou nas duas naturezas de Cristo? Por um lado, estes cristãos não são suscetíveis a negar explicitamente a ortodoxia patrística acerca da Trindade ou da Cristologia. No entanto, é frequentemente assumido que estas são "doutrinas" que têm pouco impacto sobre a adoração, espiritualidade e vida do cristão comum.
Em resposta a este primeiro grupo de igrejas, outras igrejas centralizam seu foco na justiça social - uma visão dos fiéis como aqueles que trabalham para o shalom de Deus em nosso mundo. Enquanto essa resposta tem uma crítica potente ao foco estreito da salvação das almas, muitas destas igrejas minimizam o ensino "controverso" ou "particularista" sobre Deus como Trindade e Cristo como o Deus-humano. O credo não é importante - mas os efeitos práticos do credo, como o amor e a justiça, são. No final, muitos da "esquerda" eclesiástica - assim como da da direita eclesiástica da América - tem um "mero cristianismo", que é um cristianismo reduzido. A Trindade, os sacramentos, e o mistério de Cristo são feitos um meio para um fim; o fim desejado é falar sobre o que realmente importa: a salvação pessoal ou a justiça social.
A Promessa do Calvinismo Católico
Em contraste com a polaridade distintamente americana entre a salvação pessoal e a justiça, um Calvinismo Católico remitologiza a cosmovisão cristã, recuperando as crenças e práticas dos primeiros séculos da Igreja. Assim como nunca Calvino usou o sola scriptura para reinventar o núcleo Trinitário e Cristológico da fé cristã, os calvinistas católicos se recusam a admitir que uma igreja "relevante" deve empurrar este núcleo teológico para a margem. Além disso, assim como Calvino procurou destacar a importância dos sacramentos como meios de graça para o cristão comum, os calvinistas católicos procuram restaurar o mistério nutritivo dessas práticas ordenadas por Cristo para o seu lugar central na vida da igreja.
Como se pareceria o restaurar o núcleo trinitário para o cristianismo reformado? Tal cristianismo seria compreender que o próprio Evangelho tem uma lógica trinitária: como pecadores, não sabemos que Deus é um Pai misericordioso que perdoa os nossos pecados até que encontramos Jesus Cristo; pela fé, somos unidos a Jesus Cristo, pelo poder do Espírito Santo, que nos forma mais e mais profundamente na imagem de Cristo. Quando nos reunimos para adoração, não estamos simplesmente dando a Deus o seu "devido", ou agindo em obediência ao mandamento divino (embora também estejamos fazendo isso), estamos encontrando a vida como ela realmente é: somos pecadores que nos encontramos gratuitamente adotados, tomados livremente por Deus, enchidos do Espírito Santo, participando em Cristo. Confessamos os nossos pecados, recebemos a nutrição da Palavra e dos Sacramentos, e saímos para amar a Deus e ao próximo, em gratidão. Em tudo isso, somos capacitados pelo Espírito a participar de Cristo, a encontrar um Pai perdoador e gracioso e, simultaneamente, a ir e servir ao próximo e ao estranho.
Assim, nós não servimos à distância a um Deus fechado em si mesmo, ou de perto a um Deus domesticado, mas servimos a um Deus que nos buscou e nos levou para dentro da própria vida Triúna. Nós trazemos nossos egos e relacionamentos quebrados para a comunhão perfeita do Deus Triúno, sendo preenchidos com o Espírito como filhos adotivos do Pai. Deus não nos deu um mundo e, em seguida, deixou-nos a nós mesmos. Nós não somos teístas genéricos, que servem a um indefinido Deus Todo-Poderoso. Somos apanhados no mistério do amor trinitário de Deus, que escolhe existir em comunhão com um povo quebrado e pecador que ele reivindicou.
Este amor Triúno se mostra mais plenamente no mistério de Cristo - a encarnação do Verbo, a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Ao recuperar a lógica encarnacional do Calvinismo católico, vemos como é errado definir a ação divina em dura oposição à agência humana. Deus e a humanidade não são opostos. Pelo contrário, no mistério da união da divindade e humanidade de Cristo, vemos como ser totalmente humano é, de fato, concordante com ser totalmente Deus. Vemos como, enquanto pessoas que estão "em Cristo," morrendo para nossos velhos egos, não estamos perdendo a nossa identidade verdadeira, ou perdendo a nossa humanidade à medida que crescemos na piedade. Em vez disso, estamos descobrindo quem fomos criados para ser -- povo em comunhão com Deus. Na verdade, a doutrina reformada da eleição pode ser vista como um desenrolar profundo do mistério da encarnação: só através do trabalho gracioso do Espírito as capacidades humanas podem funcionar como deveriam funcionar, porque a humanidade só é animada e energizada quando está em comunhão com Deus.
Além disso, a alta teologia sacramental do século 16, representada por Calvino, fornece uma maneira de viver profundamente esta teologia trinitária e cristológica. A Palavra é lida, a Palavra é pregada. Então, na Ceia do Senhor, os crentes participam de Cristo, a Palavra, pelo Espírito. A Ceia do Senhor não é simplesmente sobre a memória. Por um lado, a crentes da Ceia do Senhor se lembram do sacrifício suficiente da cruz de Cristo para o perdão dos pecados. No entanto, a Ceia do Senhor é também sobre alimentação, sobre nutrição -- receber o que Cristo prometeu, pelo poder do Espírito. Para que isso seja inteligível, as principais características da cristologia Reformada devem estar operantes -- que Cristo é uma pessoa com naturezas divina e humana, ascendeu ao céu e é glorificado. Na Ceia do Senhor, os crentes provam o céu, não como místicos solitários, mas no amor da comunidade e para com o próximo em necessidade. Calvino não somente desejava que a comunhão fosse celebrada semanalmente; ele e Bucer desejavam que esmolas fossem dadas aos pobres a cada celebração da Ceia do Senhor³. Por que? Porque a Ceia -- como a vida cristã -- é sobre a participação em Cristo. À luz de Mateus 25:31-46, essa participação significa ver Cristo no estrangeiro e no marginalizado4.
Assim, a ascensão dos crentes ao céu no recebimento da Eucaristia -- a participação na ascensão do Deus-humano -- não é uma fuga deste mundo. A alta teologia eucarística nos traz de volta ao mundo, de volta para o próximo em necessidade. Além disso, nesta ascensão eucarística, a Igreja descobre quem ela é. Como Agostinho escreveu: "Se vós, portanto, sois o corpo e membros de Cristo, é o vosso próprio mistério que é colocado sobre a mesa do Senhor! É o vosso próprio mistério que estais recebendo!"5. A igreja é o corpo de Cristo na terra -- que é precisamente o que os crentes recebem na Ceia: comida para serem quem são, o corpo de Cristo no mundo.
A teologia trinitária não é menos central para o sacramento do batismo. No batismo, os crentes são unidos a Cristo pelo Espírito para servir ao Pai. Este ato de batismo não é apenas um ato de uma só vez capturado no tempo -- ele se estende pelo tempo, porquanto toda a vida dos crentes são respostas à iniciativa do Espírito no batismo. Assim, a chave para a teologia de Calvino do batismo era Romanos 6:3-8 -- que o batismo é uma imagem para o nosso velho ser crucificado com Cristo, de modo que somos feitos "vivos para Deus em Cristo Jesus" como aqueles que vivem vidas batizadas, participamos da morte e da ressurreição de Cristo. O batismo não é apenas um discreto evento passado, mas é um mistério que experimentamos diariamente. À medida que morremos para o pecado e vivemos para Cristo nos tornamos o povo da aliança que fomos criados para ser. Assim como na Ceia do Senhor, nos afastamos de nossa identidade falsa para a nossa verdadeira identidade - em Cristo, apanhados na vida Triúna -- no batismo, diariamente nos afastamos de nossos falsos eus, para nosso verdadeiro eu. Assim, participamos do plano da aliança de Deus: eleger um povo pelo Espírito para estar em Cristo, carregando o evangelho ao mundo.
Em conclusão, por que falar de um "calvinismo católico"? Eu escolho falar desta maneira, porque ela destaca o que está faltando em muitos entendimentos do cristianismo Reformado: a teologia trinitária, cristológica e sacramental sobre a qual a teologia reformada clássica tem grandes dívidas para com a reflexão patrística. O termo "católico" capta um pouco do que foi perdido pelas Igrejas Reformadas à "esquerda" e à "direita" que caíram em um "mero cristianismo", que é um cristianismo reduzido. Se o Cristianismo reformado na América deverá se recuperar dos reducionismos paralisantes do Iluminismo, ele deverá recuperar as riquezas da tradição Reformada pré-moderna -- a partir da tradição teológica patrística que Calvino e muitos teólogos reformados posteriores tanto admiravam.
Notas:
1 Calvin, Institutes, 1536 edition, translated by Ford Lewis Battles. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1986, 5-6.
2 Ibid.
3 Ver Elsie McKee, John Calvin on the Diaconate and Liturgical Almsgiving. Genève: Librairie Droz, 1984. Na freqüência da Ceia do Senhor, as práticas reformadas e católicas romanas sofreram uma inversão irônica: no século 16, a maioria dos católicos romanos apenas recebiam a comunhão uma vez por ano, e então em apenas um tipo. Calvino e Bucer defendiam uma celebração semanal para restaurar a centralidade da efetiva recepção do sacramento para o crente comum. Hoje, a situação se inverte. Católicos celebram a missa semanalmente, enquanto igrejas reformadas geralmente celebram trimestral ou mensalmente.
4 Ver McKee, 50.
5 Tradução de Agostinho, por Nathan Mitchell na Assembléia 23 (1997) 14.
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J. Todd Billings é professor assistente de teologia reformada no Western Theological Seminary em Holland, Michigan (EUA) e autor de Union with Christ: Reframing Theology and Ministry for the Church (Baker Academic),.
Original: Perspectives 2006 http://www.rca.org/page.aspx?pid=2996
tradução livre: @danieldliver
Vejam também: http://www.calvin.edu/meeter/publications/lectures/2012_smith_lecture.htm
ResponderExcluir"Lift Up Your Hearts: John Calvin’’s Catholic Faith"
Sometimes contemporary Protestants seem to out-protest John Calvin. Indeed, if 21st century Protestants visited the sort of church John Calvin envisioned as the fruit of reform, we might be surprised at how “Catholic” it would feel. This lecture explores the important ways that the Reformed tradition is an accent within Catholic Christianity, and teases out the implication of that for contemporary discipleship.