James K. A. Smith
Protestantes tendem a travar com a menção da palavra “Ritual”. A palavra é um gatilho que evoca uma história da Reforma que se afundou em nossos ossos. Nós associamos ritual com a ortodoxia morta da "vã repetição", a negação da graça, a tentativa de ganhar a salvação, marcar pontos com Deus, “passando pelas moções", e várias outras formas de insinceridade espiritual.
E ainda assim afirmamos, e até celebramos, ritual em outras esferas. Nós reconhecemos que a busca da excelência muitas vezes exige devoção a um regime de rotinas e disciplinas que são formativas precisamente porque são repetitivas. Qualquer pessoa que tenha dominado uma tacada de golfe ou uma fuga de Bach é um animal ritual: ningúem simplesmente alcança tal excelência de outro modo. Em ambos os casos, o ritual é marcado pela repetição encarnada. O ritual recruta nossa vontade através do nosso corpo: os dedos do violoncelista se habituam ao movimento através de escala após escala; todo o corpo do jogador de golfe é treinado por um milhão de movimentos de prática.
Porque nós somos criaturas de hábito encarnadas -- Deus nos criou assim --, somos profundamente moldados pelo ritual. É por isso que o ritual pode de-formar-nos também: conhecemos em primeira mão o poder destrutivo de rotinas e ritmos que podem manter-nos cativos e fazer-nos ser quem não queremos ser.
Em todos esses casos, intuímos que os rituais não são apenas algo que fazemos, eles fazem algo a nós. E o seu poder formativo trabalha o corpo, e não apenas a mente. Então por que devemos ser alérgicos ao ritual quando se trata de nossa vida espiritual? Poderíamos resgatar o ritual?
Habitações do Espírito
Nossa avaliação negativa do ritual deriva de um par de premissas erradas. Primeiro, quando se trata de devoção religiosa, tendemos a ver a observância ritual como mera obediência ao dever, uma forma de marcar pontos com Deus e ganhar crédito espiritual. Vemos ritual como um esforço de baixo para cima -- e "esforço" começa a soar como "obra". Não leva muito tempo antes de isso tudo parecer parte de um elaborado sistema de "salvação pelas obras".
Vamos admitir que algumas pessoas religiosas, sem dúvida, observam o ritual com tal intenção equivocada. Nós nos unimos a Lutero e Calvino e aos Reformadores em rejeitar tais tentativas supersticiosas de bajular Deus. Mas por que devemos nos contentar com simplesmente identificar ritual com "obras de justiça"?
Nós temos uma visão mais nuançada do ritual em outras esferas da nossa vida. Podemos dizer quando alguém está "apenas fazendo os movimentos", mas não vemos os movimentos em si mesmos como o problema. Nós conhecemos a diferença entre a estudante de piano praticando escalas, porque ela "tem que praticar" e a estudante que faz isso em busca da excelência.
Se eu me comprometer com o "ritual" de tocar escalas durante uma hora por dia, durante anos a fio, é porque eu sei que este é um caminho para que eu me torne alguém que eu quero ser. Não é apenas um exercício ascendente da minha parte, é também uma espécie de força descendente que me faz, me molda e me transforma. É uma maneira de eu ser apanhado na música - um caminho para meus dedos e mãos e mente e imaginação serem recrutados para a sinfonia que eu quero tocar.
Se isso é verdade em um nível "natural", por que não deveria também ser verdade para a nossa vida espiritual? A devoção cristã histórica lega a nós rituais e ritmos e rotinas que são o que Craig Dykstra chama de "habitações do Espírito" -- práticas concretas que são condutoras do poder do Espírito e da graça transformadora de Deus.
Pense em alguns rituais do culto reformado. Semana após semana, algumas congregações são convidados a se levantar para ouvir a Palavra de Deus. Por quê? Essa mudança de postura corporal envia um pequeno sinal inconsciente: Ouçam -- algo importante está por vir. Depois de falar a Palavra, o pregador anuncia: "Esta é a Palavra do Senhor." A que o povo responde: "Graças a Deus." Você pode dizer isso sem pensar. Mas isso não significa que não está fazendo alguma coisa. Esse pequeno ritual treina o seu corpo para aprender algo sobre a autoridade da Palavra de Deus, e a responder em gratidão.
Rituais carregados pelo Espírito são formas concretas em que Deus se apodera de nós, reorienta-nos, e capacita-nos a ser portadores de sua imagem. São maneiras para o Espírito nos encontrar onde estamos, como criaturas encarnadas.
Adoração é Para Corpos
Uma segunda razão pela qual gente Reformada desvaloriza o ritual é porque temos a tendência de reduzir a fé cristã a um conjunto de crenças e os crentes a seres pensantes principalmente.
O filósofo canadense Charles Taylor descrever esse intelectualismo como um dos resultados Frankensteinianos da Reforma Protestante -- uma espécie de monstro não intencional, que ultrapassa as boas intenções dos reformadores em si. Justamente criticando a superstição e as visões "mágicas" do ritual, os reformadores desencadearam um impulso em direção ao que Taylor chama de "excarnação". Uma des-encarnação da vida espiritual, que reduziu a "religião verdadeira" à “crença correta”.
O resultado final foi uma reconfiguração completa da adoração e da devoção. O culto cristão não era mais um exercício integral que recrutava o corpo e tocava todos os sentidos. Em vez disso, os protestantes conceberam a adoração como se os crentes fossem pouco mais do que os cérebros-em-uma-estaca. O alvo principal era a mente, os meios primários eram um sermão-palestra, e o objetivo principal era depositar as doutrinas e crenças certas em nossas cabeças para que pudéssemos então sair ao mundo para cumprir a missão de Deus.
O problema com isso, no entanto, é que não somos criados como cérebros-em-uma-estaca; nós fomos criados como criaturas encarnadas, táteis, viscerais que são mais do que processadores cognitivos ou máquinas de crenças. Como portadores encorpados da imagem de Deus, o nosso centro de gravidade está localizado tanto em nossos corpos como em nossas mentes. É precisamente por isso que o corpo é o caminho para o nosso coração, e essa intuição "encarnada" há muito informou a rica história das disciplinas espirituais e da formação litúrgica.
Um pouco desta intuição encarnada já molda o que fazemos. Congregações que celebram a Ceia do Senhor semanalmente (como fizeram na Genebra de João Calvino) têm um profundo apreço pela natureza tátil da prática. Aqui está um ritual que retrata o evangelho e que ativa todos os nossos sentidos: paladar, tato, olfato, audição e visão. É um ritual cuja repetição é um dom, não um aborrecimento. Através de nossa imersão nele, o evangelho se afunda em nossos ossos. Nós absorvemos a história da graça de Deus de uma maneira que nem sequer percebemos.
Ou considere o valor de um simples ritual de confissão que envolve tanto a repetição quanto corpo, e que pode ser especialmente apropriado para a Quaresma. Ao adotar uma oração padrão de confissão, o culto constantemente coloca uma oração nos lábios que se infiltra em nossos corações e sai de nossos corações ao longo da semana. Quando nos ajoelhamos para confessar, a nossa postura física tanto expressa quanto estimula a humildade diante de Deus. Conhecemos a graça de Deus de uma forma diferente porque ela está inscrita em nossos corpos.
Não precisamos ter medo do ritual. Se apreciarmos o fato de que Deus nos criou como criaturas encarnadas, incorporadas, então vamos reconhecer que sua graça carinhosamente se estendeu a nós de maneira que encontra-nos onde estamos: na prática de rituais carregados pelo Espírito, tangíveis e encarnados. Reenquadrados desta forma, poderemos ser capazes de redimir os rituais como dons de Deus para o povo de Deus.
Sobre o autor:
James K. A. Smith é professor de filosofia no Calvin College em Grand Rapids, Michigan, onde ensina no departamento de estudos congregacionais e ministeriais.
Do mesmo autor: Santificação para a Vida Ordinária (iProdigo)