28 de janeiro de 2014

A Disciplina da Confissão - Dallas Willard

Confissão é uma disciplina que funciona dentro da comunhão. Nela, permitimos que pessoas confiáveis conheçam nossas fraquezas mais pro­fundas e nossas falhas. Isso nutre nossa fé na provisão de Deus para nossas necessidades por meio do seu povo, nosso senso de ser amado e nossa humildade diante de nossos irmãos. Assim permitimos que alguns amigos em Cristo saibam quem somos na verdade, não retendo nada importante, mas procurando manter a máxima transparência. Deixamos de carregar o peso de esconder e fingir, que normalmente absorve uma quantidade es­pantosa de energia, e engajamo-nos mutuamente nas profundezas da alma.

A igreja do Novo Testamento parece ter admitido que, se um irmão tivesse alguma enfermidade ou estivesse passando por qualquer aflição, a situação poderia ser motivada por um pecado, que separava a pessoa do pleno fluir da vida redentora. Assim, a Epístola de Tiago (5.16) diz: "Con­fessem os seus pecados uns aos outros e orem uns pelos outros para serem curados. A oração de um justo é poderosa e eficaz. "Temos de aceitar o fato de que um pecado inconfesso é um tipo especial de jugo ou obstrução na realidade psicológica e física do cristão. A disciplina da confissão e do perdão remove este jugo.

A confissão também ajuda a evitar o pecado. Provérbios 28.13 diz que "quem esconde os seus pecados não prospera, mas quem os confessa e os abandona encontra misericórdia". Obviamente, "confessar" ajuda a "aban­donar", pois persistir num pecado dentro de um círculo íntimo de rela­cionamentos (sem mencionar a comunhão no corpo transparente de Cris­to) é insuportável. Dizem que a confissão é boa para a alma mas ruim para a reputação; e que uma má reputação torna a vida mais difícil em relação às pessoas mais próximas, isso todos nós sabemos. No entanto, proximi­dade e confissão nos forçam a manter uma distância do mal. Nada oferece melhor suporte para o comportamento correto do que a verdade aberta.

Abrir a alma para um amigo cristão maduro ou um ministro qualifica­do capacita essa pessoa a orar por problemas específicos e fazer coisas que podem ser úteis à redenção daquele que está confessando. Somente a con­fissão torna possível a comunhão profunda, e a falta dela explica muito da superficialidade encontrada nas igrejas. O que torna a confissão suportável? A comunhão. Há uma reciprocidade essencial entre as duas disciplinas.

Onde há confissão dentro de uma comunidade, a restituição não pode ser omitida e também serve como uma poderosa disciplina. É difícil não retificar os erros, uma vez que são confessados e conhecidos. É evidente que nem todo pecado exige restituição. Contudo, é inconcebível que eu sinceramente confesse a meu irmão que roubei sua carteira ou manchei sua reputação e depois siga alegremente meu caminho sem tentar fazer alguma coisa em relação ao que foi perdido.

Em geral, nossa integridade inata (uma força dentro de nossa persona­lidade) exige restituição. Freqüentemente, não é uma experiência muito agradável, mas de fato fortalece nossa vontade de fazer a coisa certa.

A confissão é uma das disciplinas mais poderosas para a vida espiri­tual. No entanto, com facilidade, pode haver abusos; e o seu uso efetivo requer considerável experiência e maturidade, tanto por parte do indiví­duo envolvido como da liderança do grupo – o que nos leva à última disciplina (Submissão).

Dallas Willard, O Espírito das Disciplinas, Editorial Habacuc, 2003, pp. 212-214

A Disciplina da Castidade - Dallas Willard

Ao listar uma disciplina que lida especificamente com o impulso sexu­al, sentimos falta de uma terminologia apropriada. Usarei o termo "castidade", embora ele, como a "simplicidade", se refira ao resultado de uma disciplina sob a graça, e não às atividades disciplinares em si. Ao exercer a disciplina espiritual da castidade, nós nos afastamos deliberadamente do engajamento na dimensão sexual do relacionamento com outros – até mesmo nosso cônjuge.

A sexualidade é uma das forças mais poderosas e mais sutis da nature­za humana, e o sofrimento ligado diretamente a ela é muito alto. Os abu­sos do sexo, fora e dentro do casamento, tornam imperativo aprender "como possuir nosso vaso em santificação e honra" (I Ts 4.4).

Uma parte fundamental desse aprendizado consiste de abstenção de práticas sexuais e de não-rendição a sentimentos e pensamentos sexuais, aprendendo assim a não ser governado por eles.

A abstenção temporária dentro do casamento, mediante consentimen­to mútuo, também foi aconselhada por Paulo como um auxílio ao jejum e à oração (I Co 7.5). Em desacordo com o pensamento predominante no mundo atual, é absolutamente vital para a saúde de qualquer casamento que a gratificação sexual não seja colocada como centro. A abstenção vo­luntária nos ajuda a apreciar e amar nossos parceiros como pessoas com­pletas, nas quais a sexualidade é apenas um aspecto. Isso reforça em nós a prática de estar bem próximo das pessoas, sem embaraços sexuais.

A castidade tem uma parte importante a desempenhar dentro do casa­mento, mas o principal efeito que buscamos por meio dela é a postura apropriada em face dos atos, sentimentos, pensamentos e das atitudes se­xuais na nossa vida como um todo, dentro e fora do casamento. A sexua­lidade não terá permissão de dominar nossa vida, se vivermos como filhos e filhas de Deus, como irmãos e irmãs em Jesus Cristo.

Isso não significa que a nossa sexualidade é algo de que devemos nos afastar. Isso seria impossível. Somos seres sexuais: "Homem e mulher os criou" (Gn 1.27). Esta passagem crucial vincula a sexualidade ao fato de termos sido criados à imagem de Deus. Ela é parte do poder com o qual servimos ao Senhor. Na sexualidade, o envolvimento pessoal, o conhecer e ser conhecido, característica da natureza básica de Deus, é providenciado de forma especial para o ser humano integral. Na união sexual plena, a pessoa é conhecida em seu corpo todo e conhece a outra pessoa por meio de todo o seu corpo. A profundidade do envolvimento é tão grande que não pode haver "sexo casual". Isso é uma contradição muito bem compre­endida pelo apóstolo Paulo, que, por isso, ensinou que a fornicação é um pecado contra o próprio corpo (I Co 6.18).

A sexualidade está na essência do nosso ser. Portanto, castidade não significa não-sexualidade, e qualquer afirmação desse jaez certamente causa­rá grande malefício. Este é um ponto muito importante. O sofrimento, em grande parte, que procede da sexualidade, não vem pela indulgência de pensamentos impróprios, sentimentos, atitudes e práticas sexuais. Grande parte procede da abstenção inadequada.

Em nenhum outro aspecto da vida humana, é mais verdadeiro o pro­vérbio "A esperança que se retarda deixa o coração doente" (Pv 13.12), e a mente também. Jesus viu claramente que a abstenção de relações sexuais ainda deixa brecha para grosseiras impropriedades e distúrbios sexuais ­alguns dos quais Ele chamou de "adultério no coração" (Mt 5.28). Jesus sabia que a abstenção correta era algo que exigia qualificações especiais (Mt 19.11:12). Paulo seguiu seu Mestre. Ele tinha o mesmo realismo quan­to ao sexo. Por isso ensinou sobre um tipo errado de abstenção quando escreveu que "é melhor casar-se do que ficar ardendo de desejo" (I Co 7.9).

Temos de entender que o "arder de desejo" não é uma questão "inte­rior" trivial, mas algo muito sério em suas implicações. Ele pode aflorar na vida humana de muitas formas: distorção severa no pensamento e nas emoções, incapacidade de engajamento em relações sexuais normais e apro­priadas, desgosto e ódio entre mulheres e homens frustrados, abuso infan­til, perversão sexual e crimes sexuais. A castidade corretamente praticada como parte de um rico caminhar com Deus pode prevenir enfermidades do coração e da mente envenenada na vida sexual, na sociedade moderna.

Dietrich Bonhoeffer faz a seguinte observação: "A essência da castida­de não é a supressão do desejo, mas a total orientação da vida do indivíduo em direção a um objetivo."

A abstenção saudável na castidade só pode ser suportada pelo envol­vimento amoroso e positivo com membros do sexo oposto. A alienação abre espaço para a concupiscência nociva. Esta disciplina deve ser funda­mentada na compaixão, em associação e na disposição de ajudar. Se ­situação familiar fosse como deveria ser, um relacionamento íntimo e com­passivo entre os sexos seria o caminho natural de relacionamentos entre mãe e filho, pai e filha, irmão e irmã. Um estudo recente indica que pais que cuidam dos filhos, dando banho, alimentando e segurando-os no colo desde os primeiros dias de vida raramente cometem abuso sexual com eles. Eles desenvolvem um amor verdadeiro pelos filhos, e o amor efetiva­mente evita que causemos mal uns aos outros. Para praticar a castidade então, devemos, primeiro, praticar o amor na busca do bem das pessoas do sexo oposto, com as quais mantemos contato em casa, no trabalho, na escola, na igreja e na vizinhança. Então seremos livres para praticar a disci­plina da castidade e extrair apenas resultados positivos dela.


Dallas Willard, O Espírito das Disciplinas, Editorial Habacuc, 2003, pp. 193-196

18 de janeiro de 2014

O Perdão Como Libertação do Mal

Uma das melhores obras de teologia cristã escritas na década passada é Exclusion and Embrace (Exclusão e Aceitação), de Miroslav Volf, que conquistouo prestigiado prêmio Grawemeyer em 2002. Volf, que dá aulas na Escola de Divindade em Yale, defrontou-se, há alguns anos, com uma questão: como ele, um croata batista, poderia amar seu vizinho sérvio ortodoxo, depois das coisas terríveis que os sérvios haviam feito em seu país? Descobriu, com a ajuda de Jürgen Moltmann, que, caso não conseguisse responder a essa pergunta, a autenticidade de toda a sua teologia seria questionada. Quem nunca precisou enfrentar de perto esse tipo de dilema deve ficar surpreso com a perspicaz mente cristã de Volf lutando com um problema tão emotivo e pessoalmente envolvente, e encarando, no processo, algumas das maiores questões teológicas, culturais e filosóficas de nosso tempo.

O argumento básico de Volf é: seja nas relações internacionais ou pessoais, o mal deve ser identificado e confrontado. Não se pode esquivar-se ou fingir (seja para facilitar a vida ou para resolver a situação de forma mais rápida) que o que aconteceu não foi tão ruim assim. Só depois disso, quando o mal e o agente do mal são identificados pelo que são e pelo que fazem -- é isso que Volf chama de “exclusão” -- pode-se dar o segundo passo, rumo à “aceitação” daquele que me (ou nos) magoou e feriu profundamente. Claro que, mesmo assim, pode ser que a aceitação não aconteça, caso o agente do mal se recuse a ver seus atos sob essa ótica. Porém, se eu nomeei o mal e me esforcei ao máximo para oferecer perdão e reconciliação genuínos, estou livre para amar a pessoa mesmo que ela não queira corresponder.

(...)

Pense um pouco na dinâmica interna do perdão. Talvez por conhecerem um pouco de psicologia pastoral, muitos leitores devem estar familiarizados com isso; no entanto, poucos o relacionam ao problema generalizado do mal. O fato é que, quando perdoamos, liberamos não apenas a pessoa do fardo de nossa ira e suas possíveis consequências, mas também a nós mesmos do fardo do que quer que tenham feito contra nós e do estado emocional debilitado em que viveremos se nos apegarmos à ira e amargura e não perdoarmos. O perdão -- de Deus para conosco, entre duas pessoas e até de nós mesmos -- é parte central da libertação do mal.

(...)

Volf e outros [afirmam] que o reconhecimento do mal é o primeiro estágio rumo ao perdão, não uma alternativa a ele.

(...)

O que devemos entender, com a máxima urgência, é que perdão não é o mesmo que tolerância. Ouvimos hoje, o tempo todo, que precisamos ser “inclusivos”; que Jesus recebeu todo tipo de gente; que a igreja acredita no perdão, e que por isso devemos casar divorciados sem questionar, recontratar funcionários demitidos por fraude e permitir que pedófilos condenados voltem a trabalhar com crianças… Normalmente não fazemos essa última afirmação, o que mostra pelo menos alguns vestígios de bom senso. Perdão não é o mesmo que tolerância. Não é sinônimo de inclusão. Não é indiferença, seja ela pessoal ou moral. Perdão não significa que não levamos o mal a sério. Na verdade, significa que o levamos bastante a sério. Para começar, implica uma determinação em dar nome ao mal e envergonhá-lo. Sem isso, não haverá o quê perdoar. Além disso, perdão quer dizer que estamos determinadosa fazer tudo que está ao nosso alcance para retomar um relacionamento adequado com o ofensor depois que o mal for tratado. Por fim, significa que decidimos, em nossa mente, que não permitiremos que o mal determine o tipo de pessoa que seremos. É isso o que significa perdão. É algo difícil de praticar e receber -- e difícil também no sentido de que, um vez em prática, ele é poderoso; diferente da falsa tolerância, que se limita a seguir a lei da menor resistência.


Gostaria de desenvolver um pouco mais esse ponto. Perdoar não significa não se importar, ou achar que não foi importante. Eu me importei, foi importante; caso contrário, não teria nada para perdoar, precisaria apenas ajustar minha atitude ao que aconteceu. (Hoje, ouvimos falar de pessoas que precisam ajustar sua atitude diante das coisas que antes achavam erradas. Porém, isso não é perdão. Se minha atitude para com alguém está errada e precisa ser corrigida, não perdoei ninguém; estou apenas dizendo que a pessoa não precisa de perdão, e, se alguém precisa, sou eu, por causa da minha postura anterior). Perdão também não é fingir que algo não aconteceu. Este aspecto é um pouco mais sutil, porque parte do ato de perdoar é comprometer-me a trabalhar no sentido de conseguir agir como se não tivesse acontecido. Aconteceu, e perdoar não implica fingir o contrário; é examinar bem o fato de que aconteceu e tomar uma decisão consciente, de vontade moral, de deixar a ofensa de lado para que ela não se torne uma barreira entre os dois lados envolvidos. Em outras palavras, o perdão pressupõe que o que aconteceu foi maligno e não pode ser considerado irrelevante. Fazer isso gera uma raiva reprimida e uma distanciamento cada vez maior entre pessoas, que já não confiam umas nas outras. É muito melhor colocar tudo sobre a mesa, seguindo a orientação do Novo Testamento, e lidar com os problemas.


N. T. Wright, O Mal e a Justiça de Deus, Ed. Ultimato, cap. 5