O que a frase antiga pode ensinar aos cristãos de hoje sobre as nossas tentativas de transformação cultural.
James K. A. Smith*
8.23.12
Muitas vezes eu espero que meu escritório seja assombrado. Veja, eu ocupo um canto humilde de um espaço de um bloco de concreto, com uma pequena porção de janela, que já foi o lar de um dos meus modelos: Rich Mouw. Antigo presidente do Seminário Teológico Fuller, Rich deixou sua marca no pensamento social evangélico enquanto ensinava filosofia no Calvin College. Foi durante esse tempo que ele escreveu uma série de pequenos livros que não apenas mudaram a minha mente; eles redirecionaram a forma de engajamento cultural evangélico americano. Assim, você pode ver porque meio que espero que meu escritório seja -- bem, se não assombrado, talvez encantado. Eu continuo esperando que algo da paixão e da sabedoria de Rich possa infiltrar-se em mim enquanto eu habito o mesmo espaço, um herdeiro de seu pensamento e em dívida para com o seu exemplo.
Em livros como Political Evangelism (1973) e When the Kings Come Marching In (1983) Mouw desafiou o outro-mundanismo apolítico dos evangélicos por persistentemente apontar para dois temas nas Escrituras: (1) a afirmação do "mui-bondade" da criação de Deus (Gn 1:31), incluindo a colocação de seres humanos para realizar o trabalho cultural neste mundo, e (2) a visão bíblica da shalom como a nossa verdadeira esperança escatológica, uma criação renovada e restaurada e florescente de acordo com os desejos de Deus. Do início ao fim, Mouw enfatizou, a Bíblia nos exorta a participar da missão de renovar todas as coisas de Deus (Colossenses 1:15-19). Então, como ele provocativamente colocou em seu livro de 1980, ao invés de olhar para a fuga divina eclodindo para fora deste mundo, somos Chamados a um Mundanismo Santo.
Se essa frase lhe dá uma pausa, você não está sozinho. Não é o mundanismo uma coisa ruim? Não devemos resistir ao mundo (conforme Tiago 4:4-5)? Não está o "mundo inteiro" sob o domínio do maligno (1 João 5:19)? Aqui nós batemos em cima da multivalência da linguagem bíblica. As Escrituras tanto pode proclamar em voz alta que "Deus amou o mundo" e que devemos "Não amar o mundo" (1 João 2:15). Contexto é tudo aqui. Como Mouw qualificou, o que apraz a Deus é um mundanismo santo -- um investimento devidamente ordenado na criação de Deus, tendo em vista promover o seu florescimento. É um "mundanismo" no sentido em que não é "de outro mundo", e é santo na medida em que incentiva a vida mundana, doméstica e cultural vivida sob o senhorio de Cristo.
Na mesma linha - de fato, como um sinônimo para o ponto de Mouw - algumas vezes você ouve as pessoas sugerir que os cristãos deveriam estar investidos na "cidade terrena", ou que somos simultaneamente cidadãos de ambas as cidades, a celestial e a terrena. Como o chamado de Mouw à "santa mundanidade", estas afirmações da "cidade terrena" são corretamente destinadas a deslocar nossa persistente outra-mundanidade -- levando-nos a ver que Deus não está interessado apenas em salvar almas da cidade, mas deseja ver o florescimento da cidade.
A invocação e a afirmação da "cidade terrestre" destina-se a refletir a robusta teologia da Escritura da criação e afirmar a nossa vida encarnada, material, social e cultural. Isso é teologia bíblica sólida e um corretivo muito necessário para nossos caminhos de outro-mundo. No entanto, porque a história do termo significa algo diferente, falar sobre a "cidade terrena" desta forma pode ser confuso.
A expressão "cidade terrena" é antiga, mas você não vai encontrá-la nas Escrituras. (Isso não é um problema em si; nem a palavra Trindade está na Bíblia) A frase vem até nós a partir de magistral obra de crítica cultural de Agostinho, a Cidade de Deus (civitas Dei, concluída por volta de 427 d.C.). Neste trabalho, Agostinho distingue a "Cidade de Deus" do que ele variadamente descreve como "a cidade deste mundo", a "cidade terrena", e a Cidade do Homem. Estas duas cidades ou sociedades ou "povos" são marcados por padrões pelos quais eles vivem: a cidade terrena vive pelo padrão da carne, enquanto que a Cidade de Deus vive pelo Espírito (14,1-4). O que em última análise, distingue as duas são seus amores: "Vemos, então, que as duas cidades foram criados por dois tipos de amor: a cidade terrena foi criada pelo amor-próprio chegando ao ponto do desprezo de Deus; a Cidade Celestial pelo amor de Deus realizado, bem como o desprezo de si mesmo" (14.28).
Para Agostinho, então, a cidade terrena começa com a Queda, e não com a Criação. A cidade terrena não é coincidente com a criação; ela se origina com o pecado. É por isso que Santo Agostinho define a Cidade de Deus em oposição à cidade terrena: elas são definidas e animadas por fundamentalmente diferentes amores. Assim, a cidade terrena não deve ser confundida com a cidade meramente "temporal" ou o mundo material. Não é idêntica ao território da criação; ao contrário, para Agostinho, a cidade terrena é uma configuração sistêmica -- e desordenada -- da vida criatural. No entanto, isso não significa que Agostinho cede a vida material, cultural, criatural inteiramente ao maligno. A Cidade de Deus não se trata apenas do que é de outro mundo: a Cidade de Deus é aquela "sociedade" de pessoas -- aquela civitas -- que são chamadas a encarnar uma antecipação da vida social e cultural que Deus deseja para este mundo.
Agostinho não invoca a cidade terrena a fim de motivar os cristãos a se preocuparem com a vida cultural deste-mundo. Sua teologia da criação já faz isso. A análise da cidade terrena é, ao invés, uma advertência, premindo os cristãos a reconhecerem que os sistemas culturais são muitas vezes fundamentalmente des-ordenados, necessitando tanto de resistência quanto de reordenação pelo labor cristão em todas as correntes da cultura. E como podemos ver a partir de suas cartas, Agostinho se envolveu nesse trabalho. Lá você encontrará o bispo investido nas realidades concretas da vida política e cívica.
Agostinho não usa o termo "cidade terrena" para dividir a realidade em uma segunda história "celeste" e um primeiro andar "terreno". Não, tanto a cidade terrena quanto a cidade de Deus são visões rivais de céu e terra. Assim, a "cidade terrena" é mais como Babilônia do que como o Jardim. Mas mesmo essa antítese fundamental não nos dá permissão para recuar em estreitos círculos santos ou para simplesmente castigar a cidade terrena.
Não, como Jeremias aconselha, como cidadãos da Cidade de Deus que nos encontramos exilados na cidade terrena (no sentido técnico de Agostinho) somos chamados a "buscar o bem-estar da cidade", precisamente porque somos chamados a cultivar a criação. Vamos buscar o bem-estar da cidade terrena, procurando anexá-la à Cidade de Deus, assim reordenando a vida da criatura para o shalom.
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James K. A. Smith é professor de filosofia em Calvin College, em Grand Rapids, Michigan.
Tradução Livre: @danieldliver
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