29 de julho de 2016

Culto e Cultura

A “recompensa” da formulação litúrgica

“Buscai em primeiro lugar, o reino (de Deus) e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6.33). A essa busca do Reino, que é a formulação litúrgica, corresponde, igualmente, algo que é dado por acréscimo, à guisa de recompensa. Não se trata, é claro, de um alvo a ser perseguido, mas de uma graça concedida. Buscá-la afanosamente por meio da formulação do culto significaria perverter todo o processo. De outro lado, porém, falsearíamos os fatos se não a recebêssemos como recompensa, gratuita, boa e bela como são todas as recompensas que provêm da graça. Esse acréscimo consiste na capacidade que tem o culto de inspirar a cultura ou provocar o surgimento de uma cultura. Desprezar tal aspecto da adoração da Igreja equivaleria a cometer o pecado da ingratidão e incorrer na heresia docética. Celebrado conforme os ditames do Senhor, o culto se constitui em foco de irradiação cultural da maior importância, pois tem um poder que purifica, favorece a auto-expressão e induz ao engajamento. A título de exemplo tão-somente, e com o fito de estimular pesquisas cujo teor só podemos indicar neste trabalho, citamos três dentre os vários aspectos de que se reveste o presente problema.

a) Em primeiro lugar, o culto é uma escola de bom gosto. “A liturgia — observa Max Thurian — é o âmbito privilegiado onde se forja a expressão estética cristã, dentro das dimensões que lhe são propostas pela simplicidade evangélica. Só a liturgia, verdadeiramente vivida como ação de graças do povo cristão, em palavras, gestos, em formas e cores, abre à vida estética um amplo campo de ação e lhe oferece uma inspiração constantemente enriquecida, inspiração essa que se reveste de caráter, não exclusivamente religioso, mas universal, cósmico — tanto é assim que na adoração litúrgica, que tem os Salmos por pano de fundo, a criação inteira, com suas luzes e sombras, é reunida e ofertada em Cristo, num sacrifício de louvor. Por ser ação de graças, a liturgia permite o desenvolvimento da vida estética na Igreja. Pois a arte outra coisa não é, em essência, senão autodoação em forma de beleza”.

Mas se o culto contribui para a formação do gosto dos fiéis, ele constitui, por via indireta, elemento de formação do gosto do mundo em que vive a Igreja. A prova está em que “não é possível pensar na história da arte sem fazer referência ao liame que a vincula constantemente à história da Igreja”. Por ser fundamentalmente cristocêntrico, isto é, pelo fato de que dá testemunho do segredo de todas as coisas, que a sua recapitulação em Cristo, o culto expurga a cultura humana de todas as suas distorções, do egocentrismo, do caos e da desarmonia que a caracterizam. Ele é o ponto focal da cultura. Se a Igreja recusa essa recompensa que provém do seu culto, ou se o mundo não se deixa pôr em xeque e inspirar pelo Evangelho, então a desordem vem à tona.

Ao tornar-se veículo da proclamação do Evangelho e da oração, a palavra se purifica. “Quanto mais sério e devoto o exercício da oração, tanto mais a oração enobrece a palavra humana. A experiência de todos os que de fato oram nos diz que só por meio de um esforço crescente é possível dominar as palavras da oração. Para os que oram com regularidade e seriedade a oração se torna cada vez menos banal. Pouco a pouco passamos a usar uma linguagem mais concentrada e cuidada, em que cada palavra adquire mais peso. Pois o que temos a dizer, reiteradamente, em circunstâncias sempre novas, é que pertencemos a Deus, que renunciamos ao esforço de possuir-nos a nós mesmos, que nos demos a ele em sacrifício, corpo e alma, para sempre”. Da mesma forma, a música se purifica ao tornar-se veículo de hinos, salmos, doxologias, louvor. Purificam-se as cores, ao transformar-se em refração simbólica da brilhante luz do Evangelho, e a arquitetura, quando se torna instrumento de construção do lugar em que se dá o encontro entre Deus e seu povo.

Como se explica então — poder-se-ia indagar — o fato de o culto poder tornar-se também âmbito de expressão do gosto mais abominável e mais ofensivo à graça e esperança cristã? A resposta é simples. O mau gosto vem a infectar o culto cristão em duas situações: quando a fé comunitária da Igreja é empobrecida a fim de dar lugar à mera justaposição de crenças individuais, cada uma com suas reivindicações particulares, fruto do isolamento e do orgulho, ou, em segundo lugar, quando a liturgia se recusa a dar forma à cultura que a circunda, preferindo submeter-se passivamente a ela, a pretexto de dar uma acolhida benevolente às aspirações do mundo. Neste último caso, a fé deixa de ser filtro e transforma-se em mero canal condutor. O mau gosto, portanto, só encontra acolhida quando o culto se torna, de começo, corrupto, seja por haver perdido sua coesão comunitária, seja por haver olvidado que não existe possibilidade de acesso à Igreja senão mediante a morte para o eu,.

b) Em segundo lugar, o culto convoca a arte ao seu serviço e atribui-lhe justificação. Consideramos desnecessário, a esta altura, invocar os fundamentos de uma filosofia cristã da arte. Mas não é a arte, no fundo, o anseio das coisas no sentido de exprimir-se liturgicamente, de descobrir a sua razão de ser na adoração para a qual foram criadas? “Não seria exato afirmar que todas as artes conduzem a uma crise, ou , melhor dizendo, estão condenadas à decomposição, ao se distanciarem do seu centro, que é de natureza fundamentalmente litúrgica? E não é o culto cristão o lugar onde as artes são julgadas e, por conseguinte, descobrem a possibilidade de reencontrar a realidade de seu ser e de sua função? E o lugar que, de qualquer forma, as artes reivindicam para si, no contexto da adoração, não é ele o vínculo que, mediante um sinal que é promessa, insere a criação não-humana no louvor que a Igreja oferece ao seu Senhor? Não seria necessário entender a arte no culto como sinal de que a adoração da Igreja escatologicamente dá acolhida ao louvor ofertado pelas criaturas não-humanas, e, por conseguinte, como sinal da profunda solidariedade existente entre os filhos de Deus e o restante da criação?* Só a falta de amor para com o mundo nos poderia excluir a arte da adoração, pelo qual o mundo redescobre sua verdadeira vocação, implica ódio ao mundo.

Mas o culto não é somente o contexto em que a arte é convocada a redescobrir a sua função específica. Ele é também o mistério no qual a arte encontra sua justificação e liberdade. Longe de nós afirmar com isso que a arte se deva restringir, por causa do culto, à categoria “religiosa”. Assim, como ao domingo segue-se a semana e ao culto dominical os trabalhos, as alegrias, as lutas e os anseios humanos, assim também é possível e absolutamente necessário que haja outros poemas além dos hinos, outras melodias que não os cânticos, outros edifícios além dos templos, outra coreografia que não as procissões, outras pinturas que não os ícones, outras esculturas além das cadeiras, atris e mesas. No entanto, como os trabalhos e alegria são justificados e santificados pelo culto, e os dias da semana pelo domingo, da mesma forma todas as demais expressões artísticas são justificadas e santificadas porque no culto cristão as artes redescobrem sua terra prometida, sua verdadeira origem e destinação.

c) O culto é, por fim, formador de cultura porque inspira a vida política e social. Ele é ponto de referência da ordem e da liberdade, da justiça e da paz. Isso porque ele celebra a verdadeira hierarquia das coisas, confessa o senhorio de Cristo e dá testemunho da graça inaudita de qua tal senhoria não anula aqueles sobre os quais domina, mas ao contrário, constitui o fundamento de sua liberdade e nutre respeito por esta. Daí a possibilidade de vocações diversas mas atentas umas as outras; daí também o cuidado dos fracos, a descoberta dos verdadeiros direitos do homem, a possibilidade de entendimento e de reconciliação entre os homens. Impossível medir os resultados do compromisso que brota do fato de a Igreja interceder pelas autoridades, pela paz, pelos fracos e doentes. É assim que o culto constitui, em relação ao mundo, fator de ordem e de liberdade, de justiça e de paz. E não basta afirmar que se trata de um fator de certa importância: é um fato determinante. Evidentemente, o mundo não reconhece que, quando investe contra o culto da Igreja, está, na realidade, abalando aquilo que o protege e preserva. A Igreja, contudo, tem o direito de capacitar-se desse fato, não para dele prevalecer-se ou tirar proveito, mas sim para se rejubilar com o serviço político e social que ela presta ao mundo, direta ou indiretamente, ao oferecer ações de graças e intercessões.

Permitimo-nos recordar, porém, uma vez mais, que, na sua formulação litúrgica, a Igreja não tem por escopo primeiro formar o gosto, justificar a existência da arte ou dar proteção ao mundo*. Procurando, por meio do culto, celebrar pelo Espírito Santo o amor do Pai manifesto no Filho, a Igreja, para sua grande surpresa, descobre que Deus recompensa esse esforço fazendo com que ela se torne formadora de cultura, lugar de beleza e bondade. E a Igreja daria mostras de ingratidão se com isso não se alegrasse.



VON ALLMEN, J. J. O Culto Cristão: teologia e prática. São Paulo: ASTE, 2006, p. 104–107

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