Adriano MarangoniAbandone suas ilusões. Certo e errado, politicamente correto, esperança, garantias.
Batman - O Cavaleiro das Trevas joga tudo para o alto para salvar apenas o essencial. A duras penas.
Uma aposta ousada da Warner Bros., o novo filme da série que estréia nesta sexta-feira, 18, traz doses generosas de reflexão sobre um mundo mergulhado em hipocrisia cotidiana e fantasias de moralidade. O que destoa de outros filmes do gênero.
Dirigido por Chris Nolan, o mesmo de Batman Begins, de 2005, este novo episódio narra a cruzada pessoal de Bruce Wayne, agora mais árdua com o surgimento do vilão Coringa, interpretado pelo ator recentemente morto Heath Ledger. Para auxiliá-lo, surge também o novo promotor público de Gotham City, Harvey Dent, contraparte "legalizada" de Batman.
Tabuleiro armado, que venha o jogo
Chris Nolan montou um espetáculo sobre a dualidade. Da lei, da loucura, da ética e do caos (fãs de quadrinhos, as referências estão lá, a fase Neal Adams, A Piada Mortal e Asilo Arkham). O novo filme de Batman é uma alegoria da modernidade, um olhar austero sobre aquilo que organiza a sociedade ou o que a leva à ruína. Inicialmente, em termos simples e caricatos, depois caminhando para um longo clímax, onde quem sai transformado não são os personagens, mas também o espectador (na melhor das hipóteses).
O Cavaleiro das Trevas é fruto de um roteiro bem amarrado, feito a seis mãos pelo diretor, seu irmão Jonathan e David S. Goyer. O filme parte do clichê (de vários, na verdade) para oferecer algo mais. Quase sem exceção, todos os personagens do filme são idealistas. Todos têm convicções claras do que é melhor para o mundo, do mais conservador ao mais radical. Batman é só a ponta do iceberg.
Depois de uma sucessão de roubos a banco, o Coringa coloca os chefões do crime de Gotham City numa situação limite. Em seguida, toma para si a liderança de toda a organização. Mas diferentemente de seus antecessores, cheios de ganância, o Coringa não quer algo tão indigno como dinheiro. Nas suas palavras, ele é um agente do caos. Pura e insanamente. Um símbolo do bizarro, do assustador, do absurdo (assim como o crime para maioria de nós). Sua intenção é subverter a ordem numa funesta piada.
Para enfrentá-lo, Batman/Bruce Wayne (novamente na pele de Christian Bale) vai sofrer perdas severas demais para não continuar em frente. Cavaleiro das Trevas, mais do que um título dramático, é a definição perfeita de sua função. Ele vai aonde ninguém pode ir, além dos limites da lei e da sensatez. Esta já foi abandonada no primeiro filme ao colocar a máscara do morcego.
Mas essa face obscura da Justiça é complementada pelo "Cavaleiro Branco" de Gotham, Harvey Dent, notável interpretação de Aaron Eckhart. Batman e Dent, antagonistas no que se refere aos métodos, convivem numa produtiva relação, mediada pelo tenente James Gordon, novamente interpretado por Gary Oldman. Mas quem conhece quadrinhos sabe que essa aliança acaba mal, afinal, Harvey Dent fatalmente torna-se o vilão Duas-Caras. A boa surpresa é que isso acontece ainda neste filme.
Do que era uma diferença "trivial", Batman e Harvey Dent passam a ser inimigos reais, depois da destruição física e mental experimentada por Dent. Duas-Caras, sedento de vingança, é a obra-prima do Coringa, convicto de que a única diferença entre um criminoso e uma pessoa comum é um dia realmente ruim.
Note-se: Batman e Duas-Caras simplesmente obedecem suas noções particulares de Justiça, só que de maneiras cada vez mais extremas.
Imagina-se que, enquanto "herói", há limites que nem Batman seria capaz de cruzar. E o espectador desavisado pode acreditar que isso é uma regra ao longo do filme. Mas há uma escolha crucial do personagem, obscenamente racional, e ressoa na realidade com a alcunha polêmica de "segurança nacional".
Se levada a extremos, essa alcunha lembra bastante algo chamado "totalitarismo". Provavelmente, isso foi tão caro ao diretor que ele fez questão de ressaltar o afastamento entre Bruce Wayne e Lucius Fox, personagem de Morgan Freeman, um dos mais dignos do filme.
Aliás, a cena do interrogatório do Coringa feito por Batman não fica devendo nada ao Capitão Nascimento, vivido por Wagner Moura, no filme Tropa de Elite.
Mas Batman não é um herói, no filme, dito em alto e bom som nas palavras do Comissário Gordon; ele é, sim, um mal necessário, um agente da ordem sobre o caos pagando pessoalmente o preço de sua função. Necessariamente anônimo, é uma válvula de escape, o peso da consciência de uma cidade, a ser encarada ou ignorada, mas vigorosamente vigilante.
É nesse tipo de sutileza que se esconde o valor de Batman - O Cavaleiro das Trevas. Provavelmente, no devido tempo, o filme de Chris Nolan será relegado a exemplar de uma indústria especialista em gerar dividendos. Afinal, traz a reboque todo tipo de quinquilharia, de DVDs a pijamas infantis.
Mesmo assim, Nolan fez de Batman a evolução do gênero "super-herói" no cinema. Nada de meio termo. A idéia é incomodar. Assim como seus personagens, Cavaleiro das Trevas está marcado sobre o estigma da dualidade: ataca fundo nossas ilusões de benevolência, mas, para tanto, nivela por baixo, através de uma fantasia juvenil. A mensagem está lá para quem quiser ver. Mas há de se ter coragem de encarar.
Batman - O Cavaleiro das Trevas, Warner Bros, 2008. Dir.: Chris Nolan. Roteiro: Chris Nolan, Jonathan Nolan, David S. Goyer. Elenco: Christian Bale, Heath Ledger, Aaron Eckhart, Gary Oldman, Michael Caine, Morgan Freeman, Maggie Gyllenhaal. Nos cinemas a partir de sexta-feira, 18 de julho de 2008.
+ Leia a resenha de Christianity Today.