Dallas Willard
O Evangelho exclusivamente social
Na extremidade oposta do espectro teológico temos um grande número de ministros, sacerdotes e congregações que têm uma visão totalmente diferente da essência do evangelho e do evangelho em si.
Seria um erro, porém, chamá-los de "liberais" sem consideráveis ressalvas. Eles são, de fato, os legítimos herdeiros da igreja cristã liberal do século XIX e primeira metade do século XX. Mas qualquer um realmente familiarizado com os ministros e teólogos do liberalismo (até a década de 1860) talvez ache que muitos deles estão mais próximos de MacArthur e Ryrie, na essência da sua doutrina bem como na sua moralidade e espiritualidade prática, do que das principais figuras e doutrinas da esquerda cristã atual.
No final dos anos 50 e início dos anos 60, já estava claro que a antiga teologia liberal, com o seu "evangelho social", era incapaz de realizar a transformação da existência humana que havia imaginado e prometido. Esmagada pelos acontecimentos do mundo, exaurido o seu capital intelectual e incapaz de oferecer conceitos que pudessem esclarecer exatamente o que acontecia na vida e na sociedade ocidental da época, ela despertou e se surpreendeu, como realidade social e institucional, do lado do opressor na aurora do movimento pelos direitos civis.
Rapidamente as lideranças liberais adotaram uma postura ativista. Em 1963 o Conselho Nacional de Igrejas (NCC) pôs em prática uma política de participação direta na luta dos negros americanos pela igualdade social e econômica. Logo depois veio o envolvimento em protestos contra a guerra do Vietnã e também em movimentos de libertação em outros países. Mais tarde surgiram as questões do feminismo, da preferência sexual, da ecologia, do respeito aos animais e da "correção" em geral.
Religião se torna ética social
Por volta de 1963, a liderança do NCC já estava preocupada com a questão da natureza e da missão da igreja, portanto com a natureza fundamental do evangelho cristão. James Findlay mostrou como isso lançou as bases da passagem ao ativismo, recuperando um elemento do radicalismo do evangelho social das décadas de 20 e 30.15
Para muitas pessoas que se engajaram no movimento pelos direitos civis, ressalta Findlay, aquele foi um momento transformador. Ele cita um dos clérigos brancos nortistas que participaram do famoso projeto de verão no Mississippi em 1964: "Foi o momento mais intenso da minha vida. Em nenhum outro momento da minha vida eu tive tamanha certeza de que era ali que eu deveria estar, de que era ali que a igreja deveria estar e de que... a minha presença era a presença da igreja". Vinte anos mais tarde, relata Findlay, essa pessoa ainda rememora o impacto entusiasmante e transformador do seu modesto papel na luta pelos direitos civis nos anos 60.16
James Traub, num ensaio publicado em 1994, fala "daqueles que como eu cresceram ouvindo Martin Luther King Jr. e que encontraram na linguagem redentora do movimento pelos direitos civis um virtual substituto da crença religiosa".17
Porém, para muitos dentro da igreja liberal, clérigos ou leigos, essa linguagem não foi só um substituto da crença religiosa. Tornou-se de fato a sua fé. Ou talvez devamos dizer que a sua crença religiosa passou a ser a dedicação aos direitos civis num sentido mais amplo - incluindo, mais recentemente, o direito de exigir que não se use simbolismo ou linguagem ofensiva na sua presença.
Dedicar-se aos oprimidos, à libertação ou simplesmente à "comunidade" tornou-se para muitos tudo o que é essencial ao compromisso cristão. O Evangelho, ou a "boa nova", segundo essa visão, era que o próprio Deus estava por trás da libertação, da igualdade e da comunidade; que Jesus morreu para promovê-las, ou pelo menos pela falta delas; e que ele "ainda vive" cm todos os esforços e tendências que as favoreçam. Para a esquerda teológica, a mensagem de Cristo tornou-se simplesmente isso.
A teologia liberal mais antiga, que na verdade era ainda primordialmente uma teologia ou visão de Deus, morreu e ressuscitou na forma de uma ética social que se podia partilhar com pessoas que não depositavam a menor confiança num Deus presente ou num Cristo vivo. O natural próximo passo foi a total inclusão de todas as crenças e práticas, salvo as opressivas como o exclusivismo do próprio cristianismo tradicional.
Deus e Jesus imanentes no amor humano
Nenhum ministro ou teólogo foi mais influente na popularização dessa visão do que John A. T. Robinson. Segundo ele, o Deus cristão não é remoto. Ele é envolvido; ele é engajado. Se Jesus Cristo significa alguma coisa, significa que Deus pertence a este mundo... Todos nós precisamos, mais do que qualquer outra coisa, de amar e ser amados... precisamos ser aceitos como pessoas, como pessoas integrais, para o nosso próprio bem. E é isso que faz o verdadeiro amor. Aceita as pessoas, sem estabelecer condições, exatamente como são. Dá-lhes valor. Dá sentido às suas vidas.18
A morte de Jesus, ainda tida como o acontecimento central do cristianismo histórico, aparece aqui:
E isso que vemos Jesus fazendo nos Evangelhos, fazendo e refazendo as vidas dos homens, dando-lhes significado outra vez. Nele vemos o amor em ação, de uma maneira que o mundo jamais vira e nunca mais viu. E é por isso que o Novo Testamento vê Deus em ação nele - pois Deus é amor. Na cruz esse amor atinge o ponto máximo. "Há amor para vocês!", diz o Calvário. E na Ressurreição vimos que nem mesmo a morte pode destruir o seu poder de transformar e curar. O amor sai vencedor.19
Esse é o evangelho da atual esquerda cristã: o amor sempre vence. E, logicamente, nisso todos nós devemos piedosamente depositar a nossa esperança.
Assim, como afirma Robinson, "O cristão é o homem que acredita nesse amor [o amor de Jesus] como a última palavra para a sua vida" (p. 52).
E o verdadeiro Jesus, como hoje se diz, é "aquele que se identificou com os oprimidos e os diferentes e que os ama", chamando-nos a fazer o mesmo. Essas palavras hoje exprimem a visão redentora da esquerda cristã, assim como a visão redentora da direita se sintetiza nas frases: "ter fé em Cristo para obter o perdão" ou "orar para receber Jesus".
O significado político e social do amor
Porém, assim como houve uma ferrenha discussão a respeito do que constitui a fé salvífica, também existe um problema relativo à precisa natureza do amor redentor. Neste mundo são muitas as coisas chamadas amor. Qual amor é Deus? E quem é esse Deus que é amor?
Aqui fica claro que a atual esquerda cristã descende da antiga teologia liberal. Robinson e aqueles que adotam a sua versão do evangelho raramente perdem a oportunidade de descartar aquela visão de Deus que o identifica ao "velhinho lá do céu". O bispo James Pike costumava dizer: "Eu não acredito num Deus que faz remendos", descartando assim respostas efetivas às orações humanas.20 Ele admitia que a oração pode fazer ajustes misteriosos e nada científicos na vida, mas não provoca "respostas" num sentido mais lato da palavra - com certeza nenhuma resposta que mude o que ocorreria de qualquer modo na ordem "natural". Então a oração se revela pouco mais que um gesto ritual perante o cosmos que pode, na melhor das hipóteses, trazer bem-estar pessoal ou ajudar a melhorar as nossas atitudes.
Mas o que é que esses teólogos realmente conseguem com a sua visão revisada de Deus - além de alinhar-se com uma visão da vida e da natureza que eles podem considerar mais científica? Não representa ela simplesmente a destruição de qualquer idéia plausível de Deus e Jesus como pessoas, vivas e acessíveis agora vivendo um relacionamento interativo com aqueles que neles confiam?
Tal relacionamento, como já vimos, foi denominado "vida eterna" pelo próprio Jesus. Mas nas mãos da esquerda teológica, o credo e o ritual da igreja se transformaram em meros símbolos consoladores de "outro" plano, remoto e inacessível da melhor das hipóteses, plano que possivelmente não passa de imaginação ou desejo.
Infelizmente esse "outro plano" não consegue dar nenhum sentido razoável ao salmo 23 ou à Oração do Senhor, por exemplo, ou à promessa de Cristo de que ele está sempre conosco. A nova teologia adota a concepção que William James certa vez descreveu como um sobrenaturalismo "universalista" ou "sofisticado". Ela "se restringe a sentimentos sobre a vida como um todo", observou ele, enquanto "a essência da religião prática... se evapora .
Privado da sua referência a um ser ou substância espiritual transcendente que ao mesmo tempo se relaciona pessoalmente com a humanidade e dela cobra responsabilidade em relação às orientações sobre como viver, esse "amor" ("Deus") se vê obrigado a se transformar naquilo que a ideologia corrente ditar. Hoje isso significa não tratar as pessoas como diferentes entre si, ao mesmo tempo dando-lhes a liberdade de fazer o que quiserem.
Mas esse "evangelho" se revela na prática pouco mais que outra versão do mundialmente famoso sonho americano. Outras palavras associadas a ele são "igualitarismo", "felicidade" e "liberdade". Como recentemente afirmou um professor de educação da Universidade Bradley, o sonho americano é que "as pessoas possam fazer ou ser o que quiserem desde que tomem a iniciativa de fazê-lo".22 O desejo se torna sagrado, e tudo o que se opõe ao desejo é mal ou pecado. A esquerda cristã nos dá, no fim das contas, simplesmente outro evangelho de administração do pecado, só que a sua substância provém dos ideais sociais e políticos ocidentais (americanos) da existência humana num mundo secular.
O descompasso do evangelho
Será enrão que poderíamos encontrar um adesivo com a seguinte frase: "Os cristãos não são perfeitos, só comprometidos com a Liberação"?
É bem possível. Os evangelhos atuais, à esquerda e à direita, exibem exatamente o mesmo tipo de alheamento conceituai da (e irrelevância prática em relação à) integridade pessoal dos crentes - ainda mais se definirmos essa integridade em termos da "semelhança a Cristo" especificada na Bíblia. Ambos carecem de uma relação essencial com a vida da pessoa como um todo, especialmente com a profissão ou o trabalho e com o tecido mais sutil dos nossos relacionamentos pessoais em casa e na vizinhança. Isso é verdade, embora todos concordem em que não deveria ser assim.
Reiterando, essa irrelevância para a vida nasce do próprio conteúdo desses "evangelhos": daquilo que eles afirmam, dos temas sobre que versam. Tratam da culpa do pecado ou de males estruturais (pecados sociais) e do que fazer a respeito deles. E só. A conseqüência natural disso é que a vida real continua sem esses "evangelhos".
Em The Search for God at Harvard, Ari Goldman conta que uma das suas colegas de turma no seminário era "esquisita" na escola e, de fato, presidia o Grupo de Gays e Lésbicas. Depois de se formar, foi nomeada pastora-assistente. A congregação local da Igreja Unida de Cristo que a nomeou também acabou ordenando-a.
Ela achou muito comovente o momento em que a congregação lhe impôs as mãos. Mas eles não sabiam que ela era lésbica. "Nunca comentei o assunto com eles", disse ela. "Se tivesse comentado, eu jamais teria conseguido o cargo. Com certeza estou levando uma espécie de vida dupla, mas isso não me parece uma dificuldade no momento."23
Essa fuga, essa irresponsabilidade nos é muito familiar. Tremendamente comum. Todo mundo sabe o que isso significa, mas "negócio é negócio". Encontramos casos parecidos em todos os pontos do espectro teológico. O pecado se revela espantosamente apartidário e nada original. (Não seria para nós quase um alívio encontrar algum que seja realmente original?) No caso dessa mulher, onde está a fé em Cristo? Será ela irrelevante? Ou simplesmente impotente? Não estaria Deus com ela se ela dissesse a verdade? Mas, repito, vida em abundância e obediência a parâmetros morais que todos sabemos serem válidos não têm nenhuma ligação inata com os evangelhos da administração do pecado. Como já ressaltamos, ser "direita" ou "esquerda" não faz diferença nesse ponto básico.
Dallas Willard, A Conspiração Divina. Editora Mundo Cristão
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veja também:
O Evangelho da Direita
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