Fui ao anjo, dizendo-lhe: Dá-me o livrinho. E ele disse-me: Toma-o e come-o, e ele fará amargo o teu ventre, mas na tua boca será doce como mel. Tomei o livrinho da mão do anjo e o devorei, e, na minha boca, era doce como mel; quando, porém, o comi, o meu estômago ficou amargo. (Ap 10:9-10)
Não fosse a companhia dos livros, as noites insones por conta do ar rarefeito das montanhas do Colorado seriam mais torturantes. Na altitude em que estava, o oxigênio não é tão farto e o sono custa a chegar. Todavia, os dias passados em solitude, silêncio e meditação no retiro promovido pelo RENOVARE USA (organização cristã fundada e presidida pelo escritor Richard Foster), do qual tive o privilégio de participar, compensavam as noites mal dormidas.
O livro de Eugene Petterson, cujo sugestivo título é Eat this Book (coma este livro), tem sido o meu companheiro noturno. Petterson é um pastor e escritor americano que, com seus escritos, tem influenciado um número significativo de leitores. Seus livros até então, na sua maioria, foram direcionados para pastores convidando-os a pensar e repensar a vocação pastoral. Eugene tem se constituído, ao lado de outros, em um modelo de resistência às práticas pastorais comprometidas e medidas por um "sucesso", muitas vezes conseguido a qualquer preço. O curioso é que em recente entrevista ele afirmou que está desistindo de escrever somente para pastores, por isso mesmo, iniciou uma série de livros sobre Teologia Espiritual, focando o público em geral. Coma este Livro, é o segundo desta série.
Minha especial atração por este livro se deu pelo fato de nele Petterson falar de uma prática espiritual que nos últimos anos tenho procurado viver. Trata-se de uma forma de ler a Bíblia nascida em meio à tradição dos Pais do Deserto e chamada Lectio Divina (Leitura Divina), que poderia também se chamar Leitura Espiritual. A Lectio Divina é uma maneira de ler o texto bíblico na qual o silêncio e a meditação da palavra lida, mastigada, comida exige de nós uma ressonância, uma resposta pessoal, um compromisso na primeira pessoa. Na Lectio Divina a ênfase não é o estudo racional ou teológico do texto, nem tampouco uma busca superficial e rápida de inspiração para viver o cotidiano, antes é um convite a deixar a Palavra de Deus penetrar as câmaras mais profundas da nossa alma e ali fazer morada. Não se consegue tal leitura senão pela via do coração, da devocinalidade, da meditação, do silêncio, da solitude. E antes que os profetas do pragmatismo levantem suas questões de ordem prática, como para que serve tal leitura, lembremos que esta Palavra comida vai metabolizar-se em nossa vida através de atos e atitudes capazes de refletir a presença do Pai, que nos serve na sua Palavra um eterno banquete; de Jesus, o filho, a Palavra que se fez carne, pão e vinho; e do Espírito Santo, o Deus que habitando em nós é capaz de saciar nossa fome mais primitiva de amor e significado.
Entendendo que a Bíblia existe primordialmente para revelar a Trindade, Petterson fala-nos de uma leitura formativa da Bíblia, aquela na qual a presença do Pai, do Filho e do Espírito Santo vai nos formando espiritualmente em sua imagem. Na verdade, nesta leitura formativa, nós é que somos lidos e formados pelo texto e não ao contrário, sendo a Lectio Divina o meio por excelência, através do qual podemos exercitá-la. Sendo assim, nossa vida é formada por um texto além e acima de nós e não por nós mesmos. O principal obstáculo para que tal leitura formativa aconteça está no fato de que em nossos dias há uma tendência na qual o nosso ego com suas múltiplas necessidades se torna o "texto autoritativo" a partir do qual a nossa vida é formada. É este enlevamento do Eu ao patamar divino que Petterson chama de uma Nova Trindade. Assim o Pai, o Filho e o Espírito Santo é substituído por uma trindade individual e pessoal composta pelas minha santas vontades, santas necessidades e santos sentimentos:
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Não tenhamos dúvida que esta soberania do ego expressa nas três "pessoas" (nossas vontades, necessidades e sentimentos) desta nova "santíssima" trindade, faz de nós mesmos e não da Bíblia reveladora da Trindade, o "texto autoritativo" pelo qual vivemos! Engana-se, porém, quem pensa que neste contexto a Bíblia deixa de ser lida, ela é lida sim, mas sua mensagem é tragada pela nossa santa vontade, necessidade e sentimento, transformando-se em um subproduto de quem somos. Ao invés de sermos formados pela Trindade da Bíblia, a Bíblia é formada pela trindade do nosso Ego.
A Lectio Divina pode ser, então, resgatada das areias quentes do deserto e atualizada no nosso cotidiano, como um dos mais vivos e poderosos meios pelos quais a Trindade pode ir formando- nos espiritualmente. Para tanto, não basta ler, é preciso como Jeremias (Jer 15:16), Ezequiel (Ez 2;8; 3;3) e o apóstolo João, comer este livro (Ap 10:9-10), e então, veremos fluir a verdadeira Trindade com sua maravilhosa força ir nos formando todos os dias à sua imagem e semelhança. |
10 de setembro de 2008
Lectio Divina
Lectio Divina e a Nova Trindade
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