Como é então que a "justificação pela fé" se opera? Em Romanos 2, Paulo já falou da justificação definitiva do povo de Deus, com base em toda a sua vida. Esta justificação ocorrerá no final, quando Deus julgar os segredos de todos os corações através do Messias. A questão da justificação pela fé é que, como Paulo insiste em 3:26, esta justificação tem lugar no presente, em oposição ao último dia. Esta questão tem a ver com as perguntas: "Quem pertence hoje ao povo de Deus?" e "Como se pode afirmar?" A resposta é: todos os que crêem no evangelho pertencem ao povo de Deus hoje, e, portanto, não importa quem tenham sido os pais, ou como se obedeceu à Torá (ou a qualquer outro código moral), ou se foi aplicada ou não a circuncisão. Para Paulo, a justificação é um subconjunto da eleição, isto é, faz parte de sua doutrina sobre o povo de Deus.
Sem dúvida, apesar de muitos esforços para impor esta conclusão, não quer dizer que a justificação nada tenha a ver com a salvação dos pecadores, do pecado e da morte pelo amor e pela graça de Deus. A eleição sempre supõe que os seres humanos são pecadores, que o mundo jaz no caos e que Deus está montando uma operação de resgate. Esta é a finalidade da aliança, e por isso é que "pertencer à aliança" significa, entre outras coisas, "o perdão do pecador". O que se prova é que a "justificação" em si não denota o processo ou o acontecimento pelo qual a pessoa é conduzida da descrença, da idolatria e do pecado para a fé, a verdadeira adoração e a renovação da vida, por obra da graça. Paulo emprega uma palavra clara e inequívoca neste sentido: ele fala de "chamado". A palavra "justificação", apesar de uso equivocado do termo pelos cristãos durante séculos, é empregada por Paulo para denotar o que acontece imediatamente depois do "chamado": "aos que chamou também justificou" (Rm 8:30). Em outras palavras, aqueles que ouvem o evangelho e a ele respondem na fé são, assim, declarados por Deus seu povo, seus eleitos, "a circuncisão", "os judeus", "o Israel de Deus", distinguidos com a condição de dikaios, "justos, participantes da aliança".
Mas a palavra "chamado" por si mesma e o fato de que a "justificação" não se refere ao modo "como sou salvo", mas ao modo "como sou declarado membro do povo de Deus", devem sempre abranger também os planos maiores da aliança. Na verdade, o esquecimento deste ponto, como tantas vezes ocorreu na teologia ocidental, tanto do catolicismo como do protestantismo, equivale a incidir no erro bem parecido pelo qual Paulo censura seus concidadãos. O objetivo da aliança era enfrentar a idolatria e o pecado para que o mundo como um todo pudesse ser resgatado, e não se discute, como lemos em Romanos 5-8, que é para este objetivo que Paulo encaminha seu argumento. Assim, a idéia dos seres humanos chamados pelo evangelho a abandonarem a idolatria e o pecado a fim de passarem a adorar o Deus vivo e verdadeiro significa por um lado, que eles podem ser resgatados e, por outro lado, que através deste resgate e pela comunidade que passam a formar poderá concretizar-se o plano de Deus de resgatar o mundo inteiro. É por esta razão que em Romanos 5:17 Paulo diz que os justificados "reinarão na vida"; o objetivo não é simplesmente que eles sejam resgatados da calamidade, mas que através deles Deus possa governar sua nova criação. É por esta razão também que a união de judeus e gentios em uma única família é uma idéia essencial para a justificação. Não se trata unicamente de tornar a vida mais fácil para os gentios convertidos aos quais podia não agradar a idéia da circuncisão, como alguns comentaristas já afirmaram, tentando ridicularizar a "nova perspectiva", mas, como Paulo explica tão brilhantemente em Efésios 3, o que se pretende inculcar é que pela criação da família formada de judeus mais gentios o Deus vivo possa implantar o projeto completo da nova criação, declarando aos principados e potestades que sua hora já chegou. A eleição repensada em torno do Messias, e reelaborada por Paulo em seus esforços apostólicos para gerar e sustentar exatamente este tipo de comunidade, mantém juntos elementos de seu pensamento que muitos séculos de sistemas alternativos mantiveram separados.
N. T. Wright, Paulo - Novas Perspectivas, pp. 151-153
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